Máscara de Oxigênio

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Ao entrar num avião, você provavelmente irá escutar (ou ler) as normas de segurança do vôo. E até quem nunca voou conhece a famosa frase ‘em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão sobre as suas cabeças'. E logo depois desse anúncio, o aviso: ‘coloque a máscara primeiro em você, e depois em quem está do seu lado.’

Essa advertência é uma boa analogia para mostrar o quão importante é se cuidar para depois cuidar do próximo. E na área da saúde (principalmente mental), essa afirmação faz total sentido.

Mas de alguma maneira, o mundo da nutrição parece se esquecer disso. Talvez porque nós nutricionistas ainda somos vistos como exemplo estético e o auto cuidado ainda está muito vinculado ao peso. Ou seja: se você estiver magro, sinal que está se cuidando e apto a cuidar de outro - ignorando o fato da nossa classe ser grupo de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares.

Nos dias atuais isso significa que se você é magra(o) - e faz questão de mostrar isso para o mundo e expõe sua alimentação perfeita e clean diariamente para o instagram, você está se cuidando (e prontíssima(o) para cuidar do outro).

Mas a verdade é outra…

Constantemente recebo mensagens de nutricionistas, estudantes de (ou aspirantes a) faculdade de nutrição. O conteúdo é muito similar: “quero muito fazer nutrição, briguei vários anos com a balança, seu trabalho me inspira, também quero ajudar pessoas” ou “tive transtornos alimentares e amo a nutrição, quero estudar mais esse mundo que me encanta” e até “vivi de dieta e quero ajudar pessoas a não passarem pelo que eu passei”.

Fico super lisonjeada quando esse tipo de mensagem cheia de esperança chega até mim, sobretudo quando envolvem admiração e consigo ver que, de alguma forma, consegui mostrar uma nutrição mais digna e cheia de significado para as pessoas.

Mas também fico muito preocupada com a expectativa de quem escreve, e é nessa hora que aconselho lembrar da máscara de oxigênio.

IMAGEM RETIRADA DO PINTEREST

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Existe uma idéia de que o saber proporciona o poder. Ou seja: se eu fizer uma faculdade de nutrição, saberei o que fazer a respeito dos meus problemas com comida/corpo, e tudo será resolvido. Mas essa não é uma verdade. A escolha da faculdade de nutrição como resolução das próprias questões pode piorar quadros, engatilhar processos de transtornos alimentares e solidificar mais ainda crenças disfuncionais a respeito de alimentação e nutrição.

Na minha percepção, uma parte do problema se deve a formação. As faculdades ainda precisam melhorar mais a grade curricular, considerando dedicar mais tempo a matérias da área de humanas (filosofia, antropologia, psicologia, sociologia, etc). Também é válido se preparar para receber uma quantidade enorme de alunos que vem de uma geração fitness e que sofre com a auto avaliação do corpo e a alimentação.

Já os futuros profissionais (ou atuais, porque não?) precisam entender a importância do auto cuidado para cuidar do outro. Escutar o outro sem julgar não é tarefa fácil, imagina para quem carrega um auto julgamento fortíssimo? E isso precisa ser bem trabalhado, principalmente por quem carrega questões com corpo e alimentação.

Essa prática já é comum nas faculdades de psicologia ou em formações de psicanálise. Segundo a psicóloga Juliana Leite, um dos pilares da psicologia é o trabalho pessoal. Apesar de não ser obrigatório, fazer terapia para ser terapeuta faz toda a diferença: tanto para o manejo clínico quanto para a suspensão das suas questões na hora de enfrentar as questões alheias.

Vou dar um exemplo clássico: uma pessoa que viveu (e ainda vive!) uma grande insatisfação corporal. Ao receber alguém com o mesmo quadro, porém com um corpo diferente, é desafiador trabalhar aquela demanda sem colocar o seu próprio julgamento como parte do tratamento. Conversando com uma nutricionista para quem dei supervisão, ela me disse que certa vez, ao receber uma paciente que estava acima do peso sem a queixa de emagrecer (apenas para saber como estava a saúde), só conseguia pensar: “como assim ela não quer emagrecer? Desse jeito vai ficar doente. Deve estar com preguiça de comer bem!”. Ora, dessa maneira você está deslegitimando a condição alheia, colocando a sua vontade sobre a dela se tornando indiferente perante a paciente. E dá pra cuidar de quem tratamos com desconfiança e indiferença?

Acho que não.

O mesmo acontece com as escolhas alimentares. Como você pretende sugerir uma alimentação equilibrada e saudável, que vê o ato de comer não só como um meio de emagrecer ou ingerir nutrientes, se as suas escolhas são cerceadas de regras e crenças limitantes?

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Outro ponto são os transtornos alimentares. Receber quem já passou ou passa por isso é uma aula: é ali no consultório que você descobre os métodos compensatórios mais diferenciados possíveis. E para quem ‘flerta’ com o problema, é ganhar uma bolsa integral nessa escola. Impulsionado pela crença que nutricionista precisa ser magra (já escrevi sobre isso aqui), a profissional se vê cercada de todas as mais diferentes fórmulas para alimentar seu transtorno (muitas vezes não diagnosticado).

Claro que é sempre importante lembrar que essas situações não são escolhas, fazem parte de um histórico pessoal. E que isso não significa que você não pode cursar a faculdade ou trabalhar com nutrição. Mas negligenciar o trabalho pessoal é se jogar num mar revolto sem nem um colete salva vidas pra tentar ajudar.

São várias questões que nos fazem clamar pelo auto cuidado. É colocando a máscara primeiro na gente que seremos capaz de colocar no outro - e assim, todo mundo respira junto. Para quem quer praticar isso, eu julgo alguns pontos essenciais:

  • Terapia: procurar um psicólogo ou psicanalista para tratar das próprias questões. Buscar ajuda não é fraqueza! Pode ser difícil enfrentar os nossos mais obscuros pensamentos, mas é revelador. E depois de um tempo de trabalho interno, somos capazes de fazer como a Juliana falou: suspender as nossas questões parar lidar com a dos outros. Além disso, entendemos quais as nossas expectativas na hora de escolher com o que trabalhar;

  • Supervisão: ainda não é uma prática comum na nutrição, mas cada vez mais nutricionistas tem oferecido esse trabalho. A supervisão ajuda profissionais a lidar com os pacientes: é ter alguém para te ‘aconselhar’ ou apontar pontos a serem trabalhados que, muitas vezes, quando estamos do lado de dentro, não conseguimos enxergar com facilidade!;

  • Dizer não: ninguém é obrigado a abraçar o mundo e dar conta de tudo (nem com terapia!). E existem casos espinhosos que a gente simplesmente não consegue lidar. Tudo bem! Indique para outro colega que sabe lidar com isso. Sua atitude te beneficiará e, com absoluta certeza, beneficiará também o paciente.

  • Ninguém salva ninguém: assim como num avião despressurizado, você não vai salvar ninguém. Você pode até ajudar seu vizinho a colocar a máscara, mas ser a salvadora do acontecimento provavelmente não vai rolar. E no consultório é a mesma coisa! Ter a intenção de mudar o mundo (ou a vida do outro) é linda, mas deve haver um cuidado em entender o quanto o fato disso não acontecer vai impactar na sua auto estima. Porque, honestamente, somos veículos de ajuda. O mérito é do paciente que se propôs a fazer uma mudança. Trabalhar para que o bem do outro seja atingido é diferente de desejar um paciente #orgulhodanutri. Porque o paciente não é ‘da nutri’, ele é dele mesmo.

Se você chegou até aqui, responda para você mesmo o que você tem feito para cuidar da sua saúde mental e emocional. Quais as suas expectativas? O que te frustra? E suas limitações? Talvez você encontre essas respostas sozinha, mas talvez precise de ajuda para oxigenar as idéias.

E tá tudo bem, desde que você lembre que só dá pra ajudar o outro a respirar se você estiver respirando.

Até a próxima,

Marina