Opinião: eating likes

Falar de doença mental não é fácil: há muito estigma. Dizer que sofre de algum transtorno alimentar é, automaticamente, aguardar algumas reações típicas de quem não entende muito sobre o tema. Algumas pessoas não sabem o que dizer. outras, irão julgar e algumas pensarão que é só uma besteira.

Imagem que recebi da minha amiga Ju @julianaleite.psi

Imagem que recebi da minha amiga Ju @julianaleite.psi

Portanto, conversar sobre o assunto é essencial. Formar uma rede de apoio, com pessoas de confiança, ajuda não só a encorajar quem sofre a procurar um tratamento, como também ajuda no processo. Procurar informação responsável e especializada também é uma idéia. E trocar idéia com quem já teve ou tem o problema pode ser muito interessante.

Pode ser.

Conversar com um grupo semelhante para entender que transtornos alimentares podem acontecer com qualquer um, ajuda tirar o fardo da culpa e da auto comiseração inerentes da doença. Estar em grupos nos quais você se identifica com as pessoas e é livre para falar o que sofre, sem olhares incompreensivos ou dolorosos, permite colocar todos os ‘demônios’ para fora - demônios esses que, constantemente, se transformam em gatilhos para comportamentos típicos dos transtornos alimentares.

Estudos demonstram que tratamentos em grupos trazem bons prognósticos, pois aumentam aa habilidade de comunicação e socialização, além do desenvolvimento da autoconsciência ao ouvir outros membros do grupo.

Com a facilidade da internet (grupos de facebook, perfis de instagram, e etc) essa troca ficou mais fácil. Até pouco tempo atrás, os blogs pro Ana e pro Mia*, eram os únicos conteúdos encontrados sobre o assunto. As informações encontradas por lá não faziam (e não fazem!) bem, aumentando a gravidade do problema. Agora podemos contar com comunidades que trocam informações com mais facilidade e qualidade, além de pessoas que falam sobre os transtornos alimentares com muito mais responsabilidade.

Mas também temos uma enxurrada de perfis de recuperação, que, na minha opinião, podem ser questionáveis. Obviamente não podemos generalizar, acredito que existem pessoas que se beneficia muito da troca. Mas na minha prática clínica, desaconselho a prática aos pacientes que estão enfrentando essas questões.

Por que?

Por dois principais motivos. O primeiro deles: não temos garantia da mensagem que irá chegar da internet, se ela é verdadeira ou falsa, se ela irá agredir ou agradar… Espera-se que, quando expomos um sofrimento, as pessoas sejam empáticas. Mas também sabemos que não é bem por aí. Existe de tudo no mundo da internet, principalmente gente que fala o que pensa sem empatia, e esses comentários podem ser gatilho para uma grande insatisfação e comportamentos compensatórios típicos dos transtornos alimentares. A ausência dos medidores de sucesso (comentários, likes e número de seguidores) também podem participar desse processo.

O segundo: Sabemos também que a insatisfação corporal é um fator preditor para os transtornos, assim como questões com autoestima (aprovações externas, por exemplo). Considerando esses fatores, fica um questionamento curioso (e contemporâneo): estariam, essas pessoas, através do instagram, trocando a forma de aprovação? Se antes a confirmação do sucesso estético era um dos combustíveis para a doença, não estariam, agora, os likes, alimentando essa necessidade?

imagem retirada do perfil @cult.class

imagem retirada do perfil @cult.class

Além desses motivos, há uma romantização dos transtornos. Não da doença em si, mas das partes ruins dela. São narrativas que contem as dificuldades de se enfrentar o transtorno alimentar, mas sempre com uma mensagem final de superação ou uma esperança colorida incutida ali. Quero dizer que não se deve ter fé de que a doença tem solução? De jeito algum. Porém, no instagram, a leveza dos fatos leva o espectador a crer que, talvez, estar doente não é tão ruim assim, não é tão difícil assim, e não é tão duro assim. Só que é, e no momento de tristeza e desespero, só há espaço para isso - e falar abertamente e tranquilamente sobre esses sentimentos, sem espaço para julgamento, é essencial. E para complementar, muitas dessas mensagens são escritas sem aquele real sentimento: o objetivo, na verdade, é receber os likes e mensagens de apoio, que poderiam vir de dentro, não de fora.

Para finalizar, gosto sempre de lembrar parar quem tem o transtorno alimentar: você não é a sua doença. Portanto, será que ao criar um perfil sobre o assunto, essas pessoas não estariam indo contra esse entendimento?

Obviamente, não estou generalizando: existem pessoas fazendo trabalhos incríveis baseados na própria vivência. Daiana Garbin, na minha opinião, é uma delas. Ela conta sua história, dá o seu testemunho, mas se mune de toda a ajuda técnica necessária, afinal, sofrer com um transtorno alimentar não te torna especialista neste assunto.

Para finalizar, gosto de relembrar que existem muitos ganhos em fazer essa troca de informações. Como citei no começo do texto, saber de pessoas que passaram pelo mesmo problema e estão aí, ainda na luta, mas com uma melhora cada vez maior, é muito reconfortante. Saber também que todos sofrem com os mesmos fantasmas, também é um alívio. O instagram (ou outras redes) proporciona tudo isso, apesar de ainda ter os seus contras que, na minha opinião profissional, me levam a crer que essa troca deveria ser feita de outra maneira.

Vale a reflexão!

*Blogs Pro Ana e Pro Mia (abreviação para Pro-Anorexia e Pro- Bulimia) são/eram, segundo esse estudo: páginas dedicadas a lidar com a anorexia nervosa a partir de uma visão positiva sobre o assunto, contribuindo para a adesão e manutenção das dietas e promovendo o comportamento anoréxico. Trata-se de diários virtuais, em que o autor fala de sua rotina, expressa seus pensamentos, publica vídeos e músicas sobre o tema em questão com o objetivo de dar dicas de como se tornar ou permanecer anoréxico, comportamento esse adotado pelos membros como um estilo de vida. Além disso, os usuários podem trocar informações, contar suas experiências, socializar os "deslizes" ou "recaídas" e as técnicas que utilizam para "enganar" a fome. A postagem de imagens de pessoas extremamente magras, muitas vezes, é utilizada pelo autor da página como um exemplo de modelo a ser seguido.