A indústria do Bem Estar

Algo que me surpreende tanto ou mais do que a pressão do emagrecimento e do corpo padrão, são as falsas promessas de quem prega um lifestyle saudável: a indústria do bem estar. Elas vão desde chás que prometem desinchar, passando por testes rápidos de alergia alimentar, chegando até enemas de café. Água alcalina, bulletproof coffee, creme que queima gordura, água com limão, sal do himalaia, bcaa... são promessas intermináveis para uma boa saúde e a longevidade.

Escrito pelo médico Dr. Jen Gunter e publicado no NY TIMES, esse artigo fala sobre a indústria do (suposto) bem-estar. Uma boa reflexão para repensar tudo aquilo que compramos e consumimos baseado em muita promessa e pouco embasamento científico.

Worshiping the False Idols of Wellness

- Adorando os falsos ídolos do 'bem estar' -

Imagem do New York Times

Imagem do New York Times

"Antes de seguirmos adiante, gostaria de deixar algo claro: Bem estar não é a mesma coisa que medicina. Medicina é a ciência responsável por reduzir mortes e doenças, e também por melhorar e prolongar nossas vidas. O termo bem-estar (wellness) costumava significar uma mistura de saúde e felicidade. Algo que faz você se sentir bem ou te proporciona alegria, e ao mesmo tempo não é prejudicial no ponto de vista médico – talvez uma massagem ou uma caminhada. Mas esse termo se tornou um falso antídoto para o medo da morte e da vida moderna. A indústria do bem estar usa terminologias médicas como ‘inflamação” ou “radicais livres” e as leva ao ponto da incompreensão. O produto final disso tudo é a promessa de uma medicina "faça você mesmo" que garante longevidade, carregada de uma confiança que a ciência não consegue alcançar.

A tendência de colocar um pedaço de carvão ativado em alguma bebida ou alimento, por exemplo. Enquanto a cor preta aparece 'magicamente' no produto adicionado, ela é vendida como uma suposta forma de eliminação de toxinas (o detox). Mas isso tem a mesma eficácia que falar com algum curandeiro local. Ou seja: nenhuma.

Talvez seja uma questão visual, estética. As poções preparadas em lindos recipientes, com ingredientes não testados e de pureza desconhecida parecem feitos para o instagram. E no caso, eu devo esclarecer quais são essas toxinas: substâncias nocivas produzidas por algumas plantas, animais e bactérias (e, para tudo isso, o carvão não é a cura).

Toxinas, de acordo com os vendedores dessas curas duvidosas, são os eflúvios nocivos da vida moderna que supostamente vagam pelos nossos corpos, causando inchaços e dificuldades cognitivas, como uma versão microscópica de Emmanuel Goldstein, do livro“ 1984”, de George Orwell.

Sem essas toxinas não há busca pela pureza: sangue “limpo”, comida “limpa”, maquiagem “limpa”. Há também atos e rituais a serem seguidos para ser ver no apogeu da detoxificação.

Medicina e religão estiveram profundamente interligadas por muito tempo, e foi só recentemente que elas se separaram. A indústria do bem estar tem procurado ressuscitar essa conexão. É o regresso da medicina, como se uma boa saúde dos tempos modernos fosse a mesma de 5000 anos atrás. A fórmula? Antigos rituais de purificação e uma pitada moderna – suplementos, produtos sem utilidade e testes sem embasamento científico.

Os suplementos dietéticos, que representam a espinha dorsal da indústria do bem estar geram 30 bilhões de dólares por ano apesar dos estudos mostrarem que não há preço que compre longevidade: apenas algumas vitaminas tem benefícios e eficácia comprovadas, como o ácido fólico antes e durante a gestação e a vitamina D para idosos em risco de quedas. A medicina moderna aconselha que os micronutrientes necessários sejam consumidos através da dieta, que é, indiscutivelmente, a fonte mais natural destes.

No entanto, a indústria do bem-estar conseguiu perverter essa narrativa e tornar os suplementos uma ferramenta necessária para práticas absurdas, como impulsionar o sistema imunológico ou combater inflamações. A cor forte e quase fluorescente da urina, fato que acontece quando há o consumo de multivitamínicos, pode dar a sensação de eficácia. Mas não passa de ouro de tolo (e da consequência da quantidade excessiva de Vitamina B2 que não foi absorvida).

E quais os possíveis danos causados em consumir carvão ativado para combater toxinas, vitaminas para deixar nossa urina mais cara e outras promessas?

O efeito placebo de ‘tentar algo natural’ pode levar pessoas com doenças graves a adiar cuidados médicos eficazes. Todo médico conhece um caso de algum paciente que morreu porque escolheu tentar alcalinizar o sangue ou fazer uma infusão vitamínica ao invés de procurar o tratamento correto para o câncer. Os dados mostram que esses pacientes com câncer que estão optando por práticas da medicina alternativa ao invés da medicina convencional tem maior probabilidade de morrer.

Manter essa grande indústria do bem-estar exige um fluxo constante de medo e desinformação. Observe com mais atenção todos os websites/redes sociais de bem estar e seus parceiros médicos, e você vai encontrar uma quantidade enorme de teorias da conspiração: vacinas causam autismo, os perigos da agua fluoretada, sutiãs e câncer de mama, telefone e câncer de cérebro, envenenamento por metais pesados, AIDS como uma construção da indústria farmacêutica. E uma grande parte das pessoas pensa que está imune a essas idéias, mas a ciência prova o contrário. Nós todos confundimos repetição com precisão, um fenômeno chamado de ‘efeito ilusório da verdade’, e ter conhecimento sobre o assunto não necessariamente te protege disso.Mesmo uma única exposição a informações que pareçam ser quase plausíveis pode aumentar a sua percepção de precisão.

Imagem do New York Times

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Acreditar em teorias conspiratórias na área médica - como a idéia de que a indústria farmacêutica suprime curas naturais - aumenta a probabilidade de uma pessoa tomar suplementos dietéticos. Então, para continuar vendendo esses suplementos, kits para enemas de café e outros exemplos, não se deve apenas manter o medo alheio, mas também colocar mais fogo nesse incêndio. Não existirá indústria de bem-estar moderna sem as teorias da conspiração.

E mesmo que você evite totalmente esses websites/redes sociais porque sabe das suas fraudes, pessoas que acreditam nessa desinformação podem afetar a saúde pública, tanto por não vacinarem (já que a vacina causa autismo e outras doenças) quanto por votar contra as políticas de saúde baseadas em evidências.

Além disso, como médico, levo isso a sério quando ouço sobre o último surto de sarampo ou quando um amigo gasta dinheiro em uma terapia que possivelmente não pode ajudar. Quando pacientes pedem por exames sem embasamento – como testes de hormônio salivar, comumente oferecidos por esses gurus – eu tenho que explicar que eu não posso, em sinal de boa fé, prescrever um teste inútil. Eu também não quero que as pessoas morram.

Então porque as pessoas correm para o lado da indústria do bem estar?

Existem alguns sintomas que eu acredito que fazem parte do nosso funcionamento biológico desde o início dos tempos, tão comuns que fazem parte da experiência humana: fadiga, gases, baixo libido, dores aleatórias, perda de vigor. Quando a medicina pode oferecer apenas uma terapia, não uma cura, ou quando médicos nos dão respostas indesejadas e vagas – “durma melhor”, por exemplo – não é difícil ver a segurança do paciente abalada, e é aí que toda a indústria teatral do bem estar entra em cena.

Ficar doente é assustador. Eu assumo que médicos podem aprender alguma coisa com essa corrente de bem estar. Está evidente que as pessoas estão procurando curandeiros, por isso precisamos encontrar maneiras de atender a essas necessidades de maneira médica, científica. 

Nós, médicos, podemos fazer mais para fornecer informações factuais sobre substâncias perigosas, como as cancerígenas, em locais sem interesse comercial, como o National Cancer Institute e o National Endocrine Society. Várias pessoas – especialmente as mulheres – há muito são marginalizadas e ignoradas pela medicina, mas a resposta não está nessas teorias conspiratórias, na religião ou em magias caras. Está na ciência.

Em sua forma atual, a indústria do bem-estar não está preenchendo as lacunas deixadas pela medicina. Está explorando-os."

O link para o texto original está aqui: https://www.nytimes.com/2018/08/01/style/wellness-industrial-complex.html

Lembrando que não sou tradutora, sou nutricionista. A tradução foi feita por mim, mas é sempre bom lembrar que não sou tradutora, sou nutricionista. Traduzi pois sei que muita gente tem dificuldade em fazer essas leituras em inglês e não gostaria de perder a oportunidade de ler!

Até a próxima,

Marina