Desafio

Quando decidi escrever sobre esse tema, joguei no google “Desafio sem doce", e lá estavam vários links para reportagens diversas sobre o tema. A primeira delas me chamou a atenção; a autora escreveu: “O que aconteceu quando topei o desafio de ficar uma semana sem ingerir açúcar”. Fui lá ver o que havia acontecido com ela e tudo o que eu li foi o suficiente para me inspirar nesse texto.

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Eu não sei de onde surgiu a idéia de fazer um ‘desafio’ de ficar sem comer algo. 30 dias sem açúcar, 30 dias sem carne, 30 dias sem refrigerante. Mas isso me remete a idéia da quaresma, período litúrgico de 40 dias que antecede a Páscoa cristã, onde, atualmente, os devotos fazem o sacrifício através da carne, excluindo esta da alimentação diária. Judeus também fazem jejum no dia do Yom Kipur e os muçulmanos do Ramadã. O jejum, independente da crença, marca um período de reflexão, e termina com uma bela refeição.

Além da reflexão, pessoas de várias crenças acreditam que cumprir essas privações fazem parte do perdão, o alívio da eternidade do divino. Cumprir um jejum dá a sensação de estar mais pertinho da garantia do paraíso, de ser uma pessoa mais iluminada e capaz.

Parece com o desafio de 30 dias né?

Claro que ficar 30 dias sem açúcar, sem carne, sem álcool ou seja lá o que for, na intenção de perda de peso, não nos coloca mais próximo do divino. Mas, em tese, nos deixa longe da tentação. E tentação, tem relação com o pecado - nesse caso, da gula. Esse processo já põe o desafio em xeque: alimentos se tornam anjos e demônios, reforçando a dicotomia da mentalidade de dieta.

E aí, quando terminamos o desafio, nos tornamos pecadores irremediáveis, e exageramos. Aquele faomso mecanismo ‘privação gera compulsão’.

Ou seja: 30 dias sem comer algo não nos garante o benefício do céu, não nos torna mais controlados e não nos ajuda a lidar melhor com aquele alimento. Porque todo mundo continua fazendo o desafio?

Acredito que tudo começa pela idéia de que você vai se desintoxicar de tal ingrediente. O açúcar tem uma pecha de tóxico e essa idéia é fortalecida até por pessoas da área de saúde, infelizmente. Ficar 30 dias sem comer açúcar e dizer que percebeu na pele os efeitos disso dá a impressão que realmente eliminar a substância te fez menos intoxicado. Mas isso só faz sentido se, quando você decidiu se desafiar, mudou toda a sua estrutura alimentar, substituindo todo o doce em excesso que você consumia por alimentos mais naturais (frutas, legumes, verduras). E isso só é sentido se sua alimentação estiver MUITO desequilibrada, riquíssima em produtos ultraprocessados e muito, mas muito doce. Se você é da turma ‘uma sobremesa por dia', provavelmente não vai perceber nada. E se apenas deixou o doce de lado mas continuou se alimentando sem qualidade, também não vai ganhar benefício nenhum: só a ansiedade de esperar o dia que o desafio acaba.

Achei super interessante a afirmação que li no texto que encontrei no google:

“Se eu senti falta do açúcar? Não, meu corpo parece bastante satisfeito com as frutas que eu comi nestes dias (bem mais do que costumo comer, diga-se de passagem)”

E é exatamente isso: nenhum desafio ou jejum vai te beneficiar sozinho. Os benefícios não vem somente na ausência de determinado ingrediente, mas sim na presença de alimentos saudáveis, naturais, pouco ou nada processados e de uma vida mais ativa.

Além disso, a sensação de poder que o período abstêmio de determinado ingrediente ou alimento pode te causar é, geralmente, terminada junto com o desafio. Se você topou se desafiar 30 dias sem doces, por exemplo, mas não mudou mais NADA na sua alimentação ou nos seus hábitos, existe uma grandíssima possibilidade de se sentir um fracasso assim que acabar o período desafiado - entrando novamente no ciclo ‘desafio/frustração'.

MAS MUITA GENTE CONSEGUE

Claro que consegue. No instagram, estamos cheios de vencedores dos desafios. Mas já parou para se perguntar qual o real interesse ou motivação por trás disso? A vantagem comercial de se colocar sob desafio é enorme, e pode até ser sugerido por uma marca, por exemplo. Aí, partindo do pressuposto que se ganha pra tal, fica muito mais tranquilo e motivador participar de um desafio.

Também não sabemos o que está por trás daquele desafio: um staff preparando todos os alimentos necessários pra seguir uma vida sem açúcar, por exemplo. Uma medicação pra reduzir a ansiedade e, por fim, a realidade - afinal, só vemos uma parte da vida de cada um via instagram. Quem me garante que aquilo é real e que o desafio está sendo mesmo cumprido?

DESAFIO EMAGRECE?

Há quem diga que eliminou sei lá quantos quilos com desafios. Eu acredito, afinal, quando há redução na ingesta alimentar, o peso diminui. Mas qual o preço disso? Esse desafio é eterno, assim como a diminuição do consumo alimentar? Ou é algo passageiro?

Se você decidir participar de um desafio e, para substituir o que foi retirado, aumentar o consumo? Provavelmente não terá emagrecimento: mas sim, muita frustração. Frustração essa que também pode surgir caso você não consiga seguir o desafio.

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RESTRIÇÃO DISFARÇADA

Por fim, chegamos no ponto que mais me preocupa: o desafio é uma maneira com carinha de ‘bem intencionada’ para mascarar uma restrição. Falar que está fazendo um teste, pra ver se é capaz, porque isso vai fazer bem, e é pelo desafio, e não pela restrição, é se enganar. O centro do desafio está em eliminar algo ao invés de pensar num reequilíbrio.

Ou seja: se colocar num grande desafio pra alcançar a graça de ficar sem algum alimento é furada. Por mais que você ouça promessas, a solução é aprender a conviver com determinados alimentos (doces, por exemplo). Porque eles sempre existirão.

O ideal não é pagar a penitência para ficar ora no inferno e ora no paraíso, mas sim procurar uma relação mais cética com sua alimentação, deixando de lado os milagres e pecados da nossa vida terrena.

Até a próxima!

Marina

OBS: as fotos foram tiradas dessa reportagem, com as fotos de Lee Price - clica aqui pra ler