A substância
Eu tenho um ímã na minha geladeira escrito ‘a lot of art is boring'. Eu adoro esse íma, porque apesar de adorar ver uma obra de arte, eu não entendo muito sobre o tema, então, volta e meio acho algumas bem chatas. Mas o tempo me fez entender que coloco esse adjetivo quando elas são incompreensíveis pro meu olhar, ou por não me tocarem em algum ponto. Porém, não é por não entendê-las que não devo reconhecer a importância de cada uma, o seu papel no tempo, na sociedade.
Para mim, o filme ‘A Substância’ assumiu um pouco desse papel. É um estilo de filme que eu não gosto porque não reconheço: muito sangue, muito horror, e em tese muita ficção. E digo ‘em tese ficção’ porque, na verdade, ele conta uma história real, sobre um dos temas que mais adoro estudar, observar e entender: o corpo da mulher.
Porque pra mim, o filme não fala (apenas) do envelhecimento feminino. Ele fala dda sua beleza, da pressão e da prisão do corpo da mulher. Não sou uma crítica de cinema e, assim como uma obra de arte, acredito que um filme pode gerar diferentes reações e reflexões em quem assiste. E fiquei com vontade de dividir as minhas. Então, escrevo abaixo com muitos spoilers o porquê ‘A substância’ é a minha nova obsessão.
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O filme já começa - e segue - com um pano de fundo incrível, que ao meu ver, foi baseado numa grande referência: a possível precursora das musas e programas fitness, a atriz Jane Fonda. Jane Fonda teve um grande boom na década de 80 com suas fitas Jane's Fonda Workout, e era super elogiada pela sua excelente forma física e vigor. Mas muita gente não sabia de um pequeno grande detalhe: Jane Fonda sofreu ANOS com uma bulimia nervosa seríssima, que tirou não apenas o seu sossego mental, como até fez ruir relacionamentos amorosos, - isso tudo contado pela própria, em diversas entrevistas.
E o mesmo acontece no filme. Elizabeth Sparkle é uma apresentadora animada, linda, feliz e fitness da TV, mas sua casa é o grande retrato da solidão. Um silêncio absoluto, sem amigos, sem família, com apenas uma cadeira na mesa de jantar. Pra mim, isso simboliza o que a gente cansa de falar, mas não cansa de fingir que não sabe: o que a tela mostra nem sempre é o retrato da realidade, e a aparência física pode ser apenas um disfarce para muitas angústias e problemas.
E ainda assim, continuamos acreditando nisso. Porque? Por muitos fatores, mas um deles se deve ao fato das decisões sobre os nossos corpos serem tomadas por homens. E um deles é Harvey, o produtor de Sparkle. Apesar de todo seu vigor, ela é dispensada por ele sob a desculpa que, quando uma mulher chega aos 50 anos, it's over. Acabou. Não tem mais espaço para uma mulher dessa idade naquele lugar.
Essa cena da demissão foi uma das que mais amei odiar. Aquele homem cheio de rugas, grisalho, tosco e cafona comendo um camarão de uma maneira grosseira e livre, está tomando decisões a respeito de uma mulher lindíssima, organizada, arrumada, limpa, útil e possível.
É o que a gente vê sempre: um homem pode não só tomar decisão a respeito do próprio corpo, como pode interferir no corpo de uma mulher. Ele pode viver com poucas (ou livre de) exigências a respeito da sua aparência. Enquanto nós, mulheres temos a nossa vida útil encurtada, nos obrigando a recorrer cada vez mais a comportamentos arriscados, obscuros, perigosos, sem lastro. A promessas.
No caso do filme, ela recorre a uma substância. De cor radioativa, estranha, desconhecida, de um lugar sujo, inóspito, arriscado e talvez até ilegal, assim como os implantes hormonais, as clínicas clandestinas, os usos off label de remédios, os tratamentos comandados por profissionais nem tão profissionais assim. Para mim, a decisão de tomar a substância mesmo depois de se deparar com tantos absurdos, simboliza o desespero pela beleza e pela juventude que a gente vê e vive todos os dias sendo mulher.
Ver as cenas das agulhas entrando no corpo de Elizabeth não é apenas aflitivo, como também mostra a mutilação que uma mulher se submete quando a decisão de modificar algo no corpo é motivada pela pressão estética. Confesso que ver isso de maneira tão explícita me deu um certo alívio, uma esperança de que algumas mulheres assistam a esse filme e repensem suas escolhas.
No filme, ela não repensou, e decisão e substância são tomadas. Surge então Sue, a ‘melhor versão de si mesma' de Elizabeth. O curioso aqui é que a ‘melhor versão de si mesma’ - essa frase tão vendida por aí, - é a versão idealizada de Elizabeth. Mesmo a instrução sendo é clara: vocês são uma só, e não duas pessoas diferentes. Aja com equilíbrio.
E como conseguir o equilíbrio se essa versão é baseada num ideal, e não no real? Tão ideal, que a idéia é se manter eternamente jovem. Para não dizer apenas que é difícil, a diretora Coralie Fargeat provou que é impossível, e que o fruto da tentativa gera muita raiva e angústia.
Mas vamos começar falando da versão Sue: uma jovem que exala sexualidade, corpo tonificado, elasticidade total, cabelos brilhantes e uma pele extremamente lisa - assim como as promessas dos produtos anti-aging, dos filtros das telas, e dos mais profundos desejos de jovens e senhoras que não querem nenhum tipo de ‘imperfeição’. E os closes das câmeras, que constrangem e assustam, se assemelham aos olhares dos homens (e porque não, mulheres) que só observam e consomem o corpo feminino através da lente da objetificação. A cena de Sue dançando me deixou tão desconfortável quanto o take dela introduzindo cada agulhada no seu corpo. Achei invasivo, como é e não deveria ser.
Ao mesmo tempo que Sue está nessa versão idealizada belíssima, dá pra sentir sua ingenuidade, sua inconsequência, sua vulnerabilidade juvenil. É pra se lembrar que a versão velha não traz apenas a parte ‘ruim' ou difícil (chame como quiser). Deixamos ou podemos deixar muitas coisas difíceis de lidar para trás. A insegurança é uma delas.
Mas pra conseguir envelhecer em paz com todos os processos que o corpo passa, é preciso equilíbrio, inclusive no uso de substâncias. E é aí que o filme me pegou de vez: a cada tentativa de se manter jovem, a versão ‘original’ envelhece mais. Justamente como acontece aqui, no nosso mundinho. Tempo, energia e dinheiro gastos com um ideal são cobrados lá na frente, ou em forma de sofrimento físico, ou em sofrimento psíquico. O filme inclusive relata, ao meu ver, uma cena de compulsão alimentar muito bem trabalhada. E a compulsão alimentar é, muitas vezes, a união entre corpo e mente, um problema derivado principalmente da angústia a respeito do corpo.
Mas voltando ao solicitado e não respeitado equilíbrio: difícil encontrar alguém que exagerou na dose quando tinha seus poucos aninhos não sentir (literalmente) na pele lá na frente. Seja pelo arrependimento dos procedimentos estéticos - aí a escolha da Demi Moore pro papel caiu como uma luva - seja pela incompreensão da inevitável velhice, seja pelas consequências da eterna busca por reconhecimento - que pode colocar mulheres em risco físico e social, as conduzindo a substâncias e relacionamentos extremamente tóxicos.
A cada minuto, o filme escancara mais essa batalha contra o próprio corpo, a raiva da velhice, a prisão da beleza. Eu poderia ainda falar muito sobre ele, mas preciso chegar ao fim. E ele é um fim polêmico, mas que na minha opinião, simboliza uma parte muito atual do tema: os espectadores também fazem parte do pesadelo. Ver, aplaudir e consumir produtos, conteúdos e notícias, perpetuando velhas idéias e ideais, faz com que a gente também seja parte desse show de horrores. E quando a gente menos imagina, somos atravessadas pelas consequências dessa audiência, de maneira quase surpreendente.
Eu li em algum artigo que o filme é a manifestação física da violência que o corpo feminino sofre todos os dias. Eu não poderia concordar mais com essa frase, porque foi justamente isso que ele simbolizou para mim.
Ouvi muita gente falando que não precisava daquilo tudo. Que o fim foi desnecessário. Que o filme é ruim, angustiante, aflitivo. Que tinham formas mais amigáveis de abordar o tema, como se o tema fosse muito amigável. Mas apesar de todas as aflições e cenas (que para o meu estômago foram) desnecessárias, preciso reconhecer a importância de toda essa visceralidade. Muita arte é chata. Mas não é o caso dessa.
Deixo aqui alguns outros materiais que recomendo:
O professor Rodrigo Sanchez descreveu muito bem esse evento nesse texto sobre a estética do liso
O episódio the substance - no podcast do The New Yorker
Finalizo com mais um lembrete:
Não sou crítica de filme, nem uma super cinéfila. Com certeza existem várias outras interpretações, referências e pontos que meu olho não viu - e outras que viu mas não consegui traduzir num texto. Esse é um texto de opinião, trocas são muito importantes e bem-vindas, mas agressividade e falta de respeito não são dispensadas!