Querido Diário de Dieta

triggerwarning.jpg

Há uma semana, assistindo um vídeo da JoutJout, o youtube me sugeriu um vídeo chamado “Diário de Dieta”. Fiquei curiosa e cliquei para ver. Afinal, diário geralmente é um caderno onde escrevemos coisas que aconteceram no nosso dia a dia. E vamos combinar: nossa vida vai muito mais além da alimentação (ou da dieta, no caso). 

Viagem sem volta. O vídeo de quase 20 minutos me sugou para um mundo paralelo onde uma pessoa não pode comer arroz mas pode comer bolachinhas do mesmo ingrediente. E peraí: outra pessoa tem que te permitir ou não comer algo?

Vida, devolva meus 20 minutos

A participante do primeiro vídeo que assisti (sim, existem mais!) é uma influenciadora super linda, com quase 700.000 seguidores na sua página do youtube. Acredito que ela pode ser apenas mais uma pessoa que ainda busca uma solução rápida para uma questão mais profunda: o peso. E o meu papel aqui não é discutir o que fez ela procurar esse tratamento, mas sim falar do tratamento e de tantos equívocos cometidos por quem acredita que dietas restritivas funcionam.

 Nutricionista pode atender a distância?

O primeiro ponto de conflito é sobre quem recomendou a dieta. No começo do vídeo ela menciona que recebeu a dieta e conversa com a nutricionista sempre, mas no final do vídeo, no dia de retornar ao consultório, ela diz que é a primeira vez que vê a nutricionista.

De acordo com o Código de Ética da categoria, é vedado ao Nutricionista realizar consultas e diagnósticos nutricionais, bem como prescrição dietética, através da internet ou qualquer outro meio de comunicação que configure atendimento não presencial.

"Prefiro saber o que tenho que comer do que pensar a respeito"

Ainda no começo do ‘diário de dieta’, ela comenta que montou um cardápio com tudo o que tem que comer – seguindo claro, as ordens da nutricionista – porque prefere ler o que tem que comer do que pensar na hora, pois assim, ela tem menos chances de errar.

Cardápios são bons para a gente conseguir se organizar. Porém, quem garante que vou estar com pouca fome na quarta, ou que vou querer comer queijo na sexta feira? Honrar a fome é um dos princípios do comer intuitivo, e na minha opinião, uma das melhores formas de entender como e porque seu corpo pede determinado alimento. Dietas automatizam esse movimento, limando seu poder de saber o que, quanto e como comer. A autonomia da escolha é uma vitória que se conquista com um pouco de dificuldade, eu confesso. Mas a partir do momento que você escuta seu corpo, começa a tratá-lo da maneira que deve ser, e não forçando sua saúde a se encaixar em algo pré estabelecido. 

Despedida antes da dieta

Em alguma parte do vídeo ela conta que um dia antes de começar a dieta fez ‘aquela despedida’. E isso é algo muito comum em quem faz dieta. Mas isso é um grande erro, afinal, você vai reencontrar com esses alimentos com o passar dos dias, querendo você ou não. A não ser que você decida viver numa clausura onde tudo o que está ao seu alcance são apenas os alimentos do cardápio da nutricionista: o que no caso, não acontece. Ao invés de despedir, não seria melhor aprender a lidar com a presença desses alimentos nas mais diversas situações?

Finais de semana, festas e dietas: um combo do medo

Durante os 20 minutos de vídeo, em algum momento, ela menciona que deixou de sair no final de semana para se manter no #foco e que, um dia jantaria na casa dos pais mas levaria seu acompanhamento para comer com a carne que eles fariam, já que os acompanhamentos de lá não eram permitidos na dieta.

Evitar eventos sociais para não ter contato com a comida é algo ‘normal’ entre quem faz dieta. Mas normal não quer dizer recomendado. O homem é um ser social. Desde que nascemos frequentamos os mais diversos tipos de celebração e reuniões que envolvem comida. E será assim até o dia da nossa partida. Faz algum sentido você se privar de um evento importante com pessoas queridas por algo tão básico e essencial que é o alimento? Repito a pergunta feita no último parágrafo: não seria melhor aprender a lidar com a presença desses alimentos nas mais diversas situações?

PESSOASVAOEVEM.jpg

 

Por fim, o emagrecimento

Durante os 20 minutos de vídeo, ela faz questão de dizer que se pesou sempre e até se mediu alguns dias. E no final, a nutricionista compara a quantidade de gordura perdida a tabletes de manteiga (11, no caso).

É uma pena que eu não tenho nem forças para falar o quão complexa é a comparação ‘gordura perdida’ e ‘tabletes de manteiga’. Mas em resumo, isso só demoniza mais a gordura (ingerida e a corporal), quando na verdade, não há alimento vilão ou mocinho, e nem todo excesso de gordura é prejudicial a saúde.

Eu tenho um ponto de vista sobre todo esse lance de emagrecimento. Eu acredito que as pessoas são livres, e que se o desejo delas é perder peso, devemos respeitar. Porém, quem quer perder peso, também deve se respeitar. Essa perda deve ser consequência de um processo de libertação, e não a causa de uma prisão que te impede de viver sua própria vida.

Não cabe a mim também falar se a protagonista desse diário é magra ou gorda, porque a minha preocupação não é com o discurso que ela faz sobre sua forma física e sua necessidade de emagrecer, mas sim com a mensagem que ela passa sobre a alimentação e 'reeducação alimentar'. Isso não é reeducação alimentar, isso é obrigação aimentar. Deixar que outra pessoa escolha o que você vai comer não faz sentido nenhum, e preocupar com o número da balança de maneira quase obsessiva não é um sinal de preocupação com a saúde: está mais próximo, inclusive, de uma doença.

E esse vídeo veio para confirmar algo que eu venho observando há muito tempo: dieta is the new black. Falar que resistiu a uma mesa de doces é super cool, e chegar numa festa contando o que você pode ou não comer do que está ali te faz diferente e, em algumas situações, vira quase uma competição de 'quem evita mais'. Ter um corpo magro e sarado digno de foto com hashtag #gratidão não te faz mais um ser superior. Você também tem que estar cercado de regrinhas non sense sobre alimentação.

Eu não sei o que motivou essa pessoa a procurar um tratamento desse tipo. Mas o que me causa mais espanto não é a escolha dela, afinal, cada um tem seus motivos e questões. O que me impressiona é que tudo isso é feito sob acompanhamento médico e nutricional, o que dificulta na hora de explicar para qualquer pessoa leiga que aquilo não faz muito sentido e que tudo o que foi mostrado ali é um adoecimento nutricional disfarçado de reeducação alimentar.

Beijos!