Bronca da Nutri

Nos meus primeiros anos de consultório, quando eu já não concordava com essa história de dieta restritiva e tinha meus questionamentos sobre a pressão da perda de peso, era comum algum paciente chegar no consultório dizendo que ‘estava com medo de tomar bronca'. Eu, que nunca fui muito boa em dar ordens e delegar funções, me perguntava o porque do medo, sem entender.

broncanutri.jpg

Com o tempo observei que esse medo tinha, de maneira geral, um histórico. As pessoas que tinham mais medo de nutricionista eram aquelas que já haviam passado com alguma e levaram broncas homéricas.

E lá no início, intuitivamente, ficava muito mais preocupada e entender o porque do tal objetivo não ter sido alcançado, explicando que o peso é apenas consequência de uma mudança de comportamento alimentar. O peso (ou medidas de circunferência) sempre estiveram presentes no meu dia a dia com nutricionista e, na maioria dos casos, não vejo problemas nesses dados existirem na consulta ou avaliação. Mas sempre deixei muito claro que aqueles números não são protagonistas: na verdade são coadjuvantes de uma mudança alimentar muito mais profunda e significativa.

O tempo passou e eu fui ganhando mais conhecimento, reforçando tudo o que já fazia sob o aprendizado do juramento hipocrático ‘primeiro, não prejudicar’. Sei que esse juramento é feito por médicos, mas sempre achei que fazia muito sentido também na nutrição.

E para ‘não prejudicar’, no meu ponto de vista, deve existir a escuta sem julgamento. Quem cria coragem de voltar a um consultório de nutricionista depois de sofrer pressões, olhares e questionamentos absurdos, precisa de acolhimento.

Não estou dizendo que o nutricionista não pode/deve falar com seriedade e despertar verdades que outro lado nem sempre quer escutar. Enfrentar o ponto da mudança é complicado, e muitas vezes nos sentimos contrariados ou fingimos não enxergar, porque é difícil trazer alguns assuntos a tona. Mas dificuldade é diferente de angústia, e esse último sentimento é o provocado pelas broncas, e não pelo diálogo.

Mas o que seria ‘bronca da nutri'?

Pra gente entender do que se trata, vou exemplificar. Há um mês atrás fiz uma enquete lá no meu instagram: “Quem aqui já foi num nutricionista e tomou uma bronca?”. Então reuni aqui algumas respostas que recebi com alguns perigos sobre esse tipo de abordagem:

  • BRONCAS QUE REFORÇAM A IDÉIA (ERRADA) QUE UM TIPO DE ALIMENTO É CAPAZ DE MODIFICAR (DEFORMAR) SEU CORPO, ALÉM DE INCITAR O TERRORISMO NUTRICIONAL

“Sim, porque comi um sonho de valsa na páscoa”

 “Como você quer emagrecer comendo pão” 

“Uma nutri tirando minhas medidas disse: essa sua barriga é resultado de tanta pizza e pastel”

“Tomei bronca porque tomava suco de laranja de manhã e assim não ia ficar magra nunca”

  • BRONCAS QUE REFORÇAM A IDÉIA (ERRADA) DE QUE PESSOAS GORDAS SÃO SEM VERGONHA E TEM UMA MENTALIDADE/PENSAMENTO PIOR E DIFERENTE DE PESSOAS MAGRAS.

“Comentei que iria comer bolo no meu niver e ele dissse que tinha que parar com pensamento de gordo” 

“No pós parto disse que eu passava mal sem carboidrato – que ela tinha sugerido. Ouvi que todo gordo sempre tem uma desculpa” 

  • BRONCAS QUE NÃO RESPEITAM AS VONTADES INDIVIDUAIS E CULTURAIS

“Levei bronca por não ter trocado o arroz branco por integral na minha casa”

“Dizia que eu teria que comer muito ovo pra compensar minha “frescura” de não comer carne” 

“Pedi pra nutri trocar o ovo com batata doce de lanche da tarde e ela me disse que minha única opção era obedecer”

"Tomei bronca porque tomei chimarrão”

  • BRONCAS QUE DANIFICAM A AUTO IMAGEM E CLASSIFICAM APENAS POR NÚMEROS, SEM RESPEITAR AS INDIVIDUALIDADES DO PACIENTE

“Ela me falou que eu era falsa magra e me mostrou a quantidade de gordura que tinha no corpo”

“A ultima que eu fui falou “olha o tamanho do seu braço, o que você fez com seu corpo”

“Tomo bronca toda vez que me chamam de obesa grau 1”

  • BRONCAS QUE REFORÇAM (OU SÃO GATILHO) DE TRANSTORNOS ALIMENTARES

Eu tenho transtorno e uma nutricionista disse “Como você chegou nesse ponto, você tá gorda demais”

 “Eu tinha medo de falar a verdade pra minha nutri, quando eu tinha compulsões quase todos os dias, porque nunca emagrecia e ela dava bronca”

“Fiz brigadeiro, a nutri pegou a calculadora pra ver quantas calorias eu ingeri”

  • BRONCAS DE PROFISSIONAIS QUE SE COLOCAM ACIMA DO PACIENTE OU O VÊEM COMO SERES ESPECIAIS

“Disse que era o nome dela que eu estava jogando no lixo”

“Sou nutri e a dona da clínica que eu trabalho disse ‘dê bronca, brigue, é disso que eles gostam”

“Disse que se não emagrecesse, não precisava nem voltar lá no próximo mês”

  • BRONCAS QUE REFORÇAM A IDÉIA DE QUE ALIMENTAÇÃO E EMAGRECIMENTO TEM QUE SER FRUTO DE FORÇA, FOCO, FÉ E SOFRIMENTO

“Disse que eu precisava era de vergonha na cara se quisesse mudar”

“Mas se você quiser ser magra de verdade, vai ter que sofrer”

  • BRONCAS DE QUEM NÃO ENTENDE NADA DE COMPOSIÇÃO CORPORAL (E DE EDUCAÇÃO)

“Uma já me disse que 100g que eu perdi era um peido que eu dava lá fora”

“Sim, voltei da grécia e engordei, quase nada. Ela me xingou dizendo que fui relaxada.”

Imagem adaptada. Adaptação feita para o post : https://goo.gl/HgJaXS

E de onde vem essas broncas?

Não sei dizer ao certo, mas tenho várias teorias. A primeira delas é do grande valor que os próprios nutricionistas dão para a estética corporal ou para uma alimentação correta como uma questão de moralidade. Sabemos que é comum a presença de transtornos alimentares em estudantes de nutrição e nutricionistas, são grupos com maior propensão de desenvolvê-los. E cursar uma faculdade de nutrição não resolve essa questão - em vários casos, só piora ou reforça. Então esse profissional toma como verdade universal a sua verdade (ou a verdade do transtorno) e broncas são necessárias para que aquele paciente ‘ande na linha’ ou ‘atinja a meta do nutricionista'.

Existe também algo meio narcísico na bronca: ela diz mais sobre quem está dando do que quem está recebendo. Afinal, você não obedeceu “a minha ordem”, a “minha meta”, “o meu desejo”… e isso tudo vem junto com uma grande necessidade de que o paciente seja uma propaganda ambulante, “o orgulho da nutri”. Ou seja: o prêmio é pra satisfazer o ego do nutricionista, e não pra cuidar da saúde do paciente.

A outra idéia é de que o paciente ‘gosta’ ou quer levar bronca. Cliente (ou seja, o paciente) gosta é de ser bem tratado, de ter um serviço efetivo. A entrevista motivacional é uma ferramenta muito utilizada na área de saúde para promover mudanças de comportamento. E bem diferente da bronca, a Entrevista Motivacional é conduzida através de um diálogo onde o paciente é protagonista, e não por imposições do profissional de saúde (no caso, nutricionista).

E, por fim, é a idéia de que todas as pessoas que procuram o nutricionista querem emagrecer ou tem uma alimentação muito ruim. Ao contrário do que se pensa, tem muita gente só querendo verificar se está tudo bem, ou tirar dúvidas no meio de tanta informação cruzada que se vê por aí. Outras realmente querem perder peso, mas pouco importa o percentual de gordura ou o número da balança. Algumas, por questões de saúde, precisam melhorar a alimentação e reduzir alguns quilos, mas elas não precisam estar numa faixa pré determinada (seja de IMC, % de gordura ou outros).

Se você já recebeu algum tipo de bronca, não desista. Tem um monte de profissional bacana por aí, que vai te ajudar sem impor ou te jogar pra baixo. Se você foi vítima de um desses discursos, pense se vale mesmo a pena acreditar que o problema é sua ‘falta de vergonha na cara'. Afinal, se isso realmente existisse, você nem ia pedir ajuda pra querer mudar, certo?

E lembrem-se: Um olhar tirano pode prejudicar. Uma escuta cuidadosa pode salvar.

Até a próxima!

Marina