Quando não vou mais pensar em comida?

“Quando vai chegar o dia que eu nunca mais vou precisar pensar em comida?”

Nunca. Eu espero que esse dia demore a chegar, pois quando ele chegar, você não estará mais viva.

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Essa idéia de que estabelecer uma boa relação com a alimentação significa não pensar a respeito dela é uma expectativa muito comum de quem não quer mais fazer restrições. Como se a boa relação com o alimento fosse um ponto final, e não um caminho.

E é justamente esse o detalhe: depois de tanto tempo de dieta, fica difícil tornar as escolhas tão intuitivas e automáticas. Se desesperar porque está pensando muito em comida é comum, mas costumo dizer para os pacientes que pra pensar pouco em comida, você precisa pensar muito nela antes!

Quando se está de dieta, o pensamento também existe e é constante. Ficar analisando se isso ou aquilo engorda/emagrece é algo que acontece o tempo todo. Não é apenas no momento da refeição, mas antes e depois, e de uma maneira muito desgastante.

Mas aí você decide que não quer mais viver numa prisão e procura ajuda. A nutricionista que te ajuda vai te usar várias estratégias ao longo do tempo: entender como funciona sua alimentação, estruturar sua alimentação, te questionar sobre seus sinais físicos de fome e saciedade, observar suas crenças e respeitar suas vontades e fragilidades. Te guiando, você segue o caminho.

E aí você espera o dia que não vai mais precisar pensar em nada, como se quem não faz dietas não faz escolhas. E esse dia não chega. Hora de lembrar que TODAS as pessoas fazem escolhas alimentares, inclusive as que nunca fizeram dietas.

A diferença é o julgamento que colocamos no momento da escolha. Optar por comer determinado alimento guiado pela dúvida de ‘vai ou não engordar’ ou ‘vai ou não emagrecer’ é diferente de avaliar se você vai ou não comer aquilo por outras razões: fome, desejo, intenção e talvez até um pouco da consequência – mas sempre olhando para a alimentação de uma maneira global, não pontual. Sem julgamento, com neutralidade.

A intenção não é fazer com que você coma sem pensar, mas que mude qual sentimento/pensamento será acessado no momento de comer. A idéia é te ajudar a ver a alimentação no macro, e não isoladamente, pensando em cada refeição ou nutriente.

Exemplo prático

Desenho feito por uma paciente para representar seus pensamentos

Desenho feito por uma paciente para representar seus pensamentos

Tenho uma paciente que adora fast-food e comia com uma frequência grande - 3 a 4 vezes/semana. A idéia inicial dela era ficar um mês sem pisar num Burguer King ou Mc Donalds, mas expliquei que restrição leva a compulsão. Na visão dela, o fato de ir ao fast-food era o grande responsável pelo ganho de peso atual (e sim, faz um pouco de sentido). Mas lembrei que somente um alimento isolado, por mais calórico que ele seja, raramente é a única causa. Então, conversando, percebemos que a vontade de restringir era tão grande - e a culpa em seguida do lanche também - que ela entrava no mecanismo da última-ceia, e aí era um ‘dane-se, comi mesmo, estraguei tudo, amanhã eu volto pra alimentação’. Ou seja: o fato do fast-food ser calórico pode até colaborar, mas ele também era um gatilho para consumir mais e mais.

O nosso combinado foi tentar reduzir a frequência das idas, e sempre que pensasse em ir, refletisse alguns pontos:

  • É fome ou vontade? Se estou com vontade, posso ir e comer menos do que quando sinto fome.

  • Estou comendo porque quero, ou tem algo me incomodando e vou usar o fast-food como recompensa ou punição?

  • O que posso fazer para melhorar a experiência nessa refeição? Uma vez que decidi ir, poderia pedir uma batata menor? Ou um refrigerante menor? Ou a única coisa que irá me satisfazer será um lanche completo?

  • Quantas vezes já fui ao fast-food essa semana? Se eu não fosse, qual outro alimento que iria me deixar feliz e saciada?

Essas e outras reflexões foram propostas e nos veríamos dali algumas semanas. Na próxima consulta, ela trouxe perguntas e respostas muito interessantes a respeito do fast-food e, sem fazer um sacrifício do tamanho de uma restrição, reduziu a frequência de consumo (e as quantidades diminuíram de maneira bem interessante).

Com o tempo ela estabeleceu as próprias metas. Tem aprendido cada vez mais a lidar com o fast-food e outras questões alimentares. Um dia desses, me perguntou quando iria parar de pensar em comida. Respondi que talvez nunca, pois essas reflexões fazem parte de escolhas que devem ser feitas! Agora ela é capaz de ir ao Mc Donald's ou ao Burguer King, fazer um lanche e sair feliz, sem culpa. Mas só porque refletiu antes de ir, observou com uma visão mais ampla, e não apenas com julgamento sobre aquela refeição de maneira pontual.

Sempre digo que para estabelecer uma boa relação com a comida o esforço é necessário, mas o sacrifício é dispensável. Não existe uma fórmula mágica, um botãozinho que você aperta e ‘plin-plin’, você não ficará mais em dúvida sobre os alimentos. Afinal, são anos no modo automático da dieta, fazendo apenas o que pode e não pode, sofrendo de culpa ao furar o combinado e exagerando nos momentos de desamparo.

Então entenda que ainda vai demorar um bom tempo para que você mude suas atitudes perante a comida. E para isso, haja reflexão! Sei que é cansativo, mas lembre-se sempre que é um caminho de autonomia, onde você pode escolher para onde vai, ao invés de obedecer ordens que nem sempre você concorda!

Até a próxima,

Marina

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Como leitura alternativa, sugiro a entrevista de Luc Ferry para o Jornal Nexo: “como não buscar a felicidade". Na entrevista, ele discute sobre como a felicidade e serenidade não são estados plenos, objetivos, pontos finais - assim como discuti aqui no texto. Sou fã do Luc Ferry!

https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/07/31/Como-n%C3%A3o-buscar-a-felicidade-segundo-Luc-Ferry