A nutricionista gorda

Desde que me formei eu escuto coisas do tipo "Ah, nutricionista! Por isso você é magrinha!" ou "Nutricionista tem que ser magra né?" e até "Não dá pra confiar em nutricionista gorda. Se ela não consegue ser magra, como vai querer que eu seja?".

Talvez você já tenha escutado ou pensado assim. E não, esse pensamento não faz sentido. Não entendeu? Senta aqui que vou te contar uma historinha...

Confesso que lá nos primórdios de 2009, quando havia acabado de me formar, eu também pensava um pouco assim. Sabem aquele papo de "dermatologista tem que ter pele boa, cardiologista não pode fumar, etc, etc, etc,?". Então. Eu também era essa pessoa.

Mas o tempo, essa coisa maravilhosa que passa e te acrescenta um monte de idéias novas, passou também para mim. E fui vendo que não fazia sentido algum essa afirmação. Percebi isso quando eu ficava nervosa a cada vez que alguém decidia enaltecer meu lado estético ao invés de saber das minhas habilidades intelectuais: "magrinha assim, melhor cartão de visita pra um nutricionista". Peraí, eu não queria ser escolhida pelo meu corpo, eu queria ser escolhida pela minha competência. E foi assim que comecei a perceber que não fazia sentido nenhum julgar o livro pela capa: o formato do seu corpo não diz nada sobre o que você sabe.  

Eu entendi que aquela minha antiga crença era carregada de preconceitos, mas também vi que é um longo caminho até mostrar para as pessoas que ainda pensam assim que isso não faz o mínimo sentido.

Além disso recebo várias mensagens de nutricionistas e estudantes de nutrição se queixando desse preconceito. Algumas dizem que tem muita vontade de trabalhar em consultório mas não tem espaço, 'porque são gordas'. É muito triste e cruel.

E por isso decidi escrever esse texto. 

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  • Será que a nutricionista é gorda?

 Algumas nutricionistas consideradas gordas não são gordas. São mulheres (e homens) apenas fora do padrão magro-esquelético-sarado do instagram/televisão. Outras podem estar acima do peso, mas e daí? A sabedoria dela não está nas células de gordura. Está no conhecimento que ela adquiriu, na sensibilidade da escuta, no entendimento de bioquímica, fisiologia e, porque não, sobre  comportamento humano. 

  • Comportamento das nutricionistas

É só fazer uma pesquisa nas bases científicas para ver as centenas de estudos sobre transtornos alimentares em estudantes de nutrição. Falando sob minha ótica e minha experiência, uma parte das nutricionistas entrou na faculdade após viver poucas e boas durante a infância e adolescência: tentaram emagrecer em vão, tiveram algum transtorno alimentar ou foram extremamente controladas no quesito alimentação. 

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Só que a faculdade acaba e os problemas continuam. Existem nutricionistas que carregam as feridas do passado para além das portas da universidade. Algumas continuam sofrendo de transtornos alimentares, outras migram de um transtorno para outro, outras conseguem se tratar e decidem trabalhar com esse tema, outras entendem que magreza e felicidade não são sinônimos e decidem valorizar uma boa alimentação e não um peso e por fim temos aquelas que continuam achando que magreza é a solução de todos os problemas

Existem nutricionistas saudáveis (corpo e mente) e existem as não tão saudáveis. O que define isso não é o formato do corpo dela. É a história que ela viveu ou vive. "Mas porque algumas profissionais continuam fomentando a idéia da 'nutricionista gorda'?". Minha opinião? Acho que para uma pessoa que batalhou a vida inteira para se manter magra acreditando que esse era a solução da vida, conseguiu emagrecer mas ainda não encontrou a felicidade, fica difícil ver alguém acima do peso feliz. Então alimenta-se o discurso da obesidade/sobrepeso como um desvio de caráter, uma falta de vergonha na cara e outras abobrinhas.

  • Escolhas alimentares

Escolher um alimento não depende apenas de 'querer' ou 'não querer'. Depende de diversos outros fatores que podem variar de acordo com idade, sexo, estado emocional, estado físico, apelo visual e etc. Querer reduzir a escolha alimentar de uma pessoa a força de vontade dela é um erro clássico e grande. Isso talvez explique o porque essa nutricionista esteja acima do peso. Porque talvez, por mais que ela saiba o que deveria comer - assim como você sabe - o conhecimento não é suficiente. Ela tem questões que vão além do 'foco, força e fé' que a impedem de ter uma alimentação equilibrada e, talvez, um peso 'menor'. 

  • O corpo é dela

Você já pensou que essa nutricionista não se sente obrigada a ser magra? Que justamente por ela entender dos riscos de tentar se manter em um peso 'esperado' faça com que ela se mantenha no peso dela e seja feliz como ela é? Você já pensou que ela decidiu não se manter em uma dieta maluca para satisfazer as vontades alheias? Já pensou que o biotipo dela é aquele, e mesmo no peso mais baixo que ela puder estar, ela ainda assim não será considerada magra? Já pensou que o formato e o tamanho do corpo não são determinados pelas suas escolhas alimentares, mas sim pela genética, cultura e outros fatores?

  • As batalhas

Agora imagine que de fato essa nutricionista está acima do peso. Você sabe as batalhas que ela vem enfrentando? Será que está fazendo algum tratamento de saúde, ou tratamento para engravidar? Será que perdeu um parente, terminou um relacionamento, está com a vida corrida, está tentando emagrecer mas ainda não atingiu o objetivo? Está com depressão, com catapora, com tristeza, com alegria. Está morando na casa da avó que cozinha super bem, ou na casa da tia que cozinha super mal. Está mal de grana e sua alimentação piorou ou tá bem de grana e tem saído muito pra comer fora. O que você sabe sobre a vida dela? O que você ganha em julgá-la somente pela aparência? E será certo ela emagrecer sem realmente desejar só porque você está preocupado com isso? E se ela estiver acima do peso temporariamente por causa dessas batalhas? Se o conhecimento dela vai continuar o mesmo se ela estiver pobre ou rica, casada ou solteira, saudável ou doente... porque ele mudaria se ela está gorda ou magra? 

  • Primeiro eu, depois profissão

Outro dia uma psicóloga me escreveu dizendo que estava se sentindo muito mal, porque havia terminado um relacionamento e se sentia culpada por não conseguir lidar com isso: "logo eu que ajudo tanto outras pessoas!'. 'Antes de ser psicóloga, você é alguém com sentimentos, vontades, desejos...', eu falei pra ela. Antes de ser nutricionista, somos pessoas. Temos preferências alimentares, temos dores, ansiedades, dias ruins e bons, tomamos pé na bunda, nos apaixonamos, perdemos parentes queridos, fazemos tratamentos de saúde, temos preguiça de ir a academia, gostamos de chocolate... Passamos por tudo que qualquer outra pessoa faz sem ou com conhecimento sobre nutrição passa. Não ficamos o dia todo pensando nesse tema. Até porque, não tratamos comida, tratamos gente. 

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Eu gostaria de produzir um texto sem fim sobre esse assunto. Fico extremamente chocada quando, em pleno século XXI, onde estamos discutindo temas como feminismo, empoderamento, amor próprio e body neutrality/positivity as pessoas continuam acreditando que um profissional precisa ser magro, alto e bonito para ser bem sucedido ou inteligente. As pessoas continuam se sentindo responsáveis pelo corpo alheio. Isso acontece? Acontece, toda hora. Eu sozinha vou mudar o mundo e o raciocínio das pessoas? Provavelmente não. Mas a mudança tem que começar de algum lado, certo? Prefiro fazer minha  parte. Porque me incomoda muito ver tanta amiga de profissão boa espalhada por aí sofrendo preconceito porque está acima do peso, enquanto tem um monte de nutricionista magra e 'padrão' falando verdadeiras aberrações.

Obviamente não estou falando que aquelas pessoas que estão acima do peso estão certas e quem é magro está errado. O mau-caratismo e a falta de ética em geral me incomoda, independente do tamanho do corpo, e isso existe independente do peso. Mas o preconceito com as bem-intencionadas, inteligentes e gordas me machuca. Eu sou a parte privilegiada que não sou atingida por esse tipo de preconceito diretamente, mas indiretamente isso interfere na minha profissão. Porque enquanto as pessoas olharem para os nutricionistas como 'emagrecistas' e como 'exemplo de saúde e beleza', existirão centenas de milhares de profissionais acreditando nisso, respondendo a essa expectativa e adoecendo pessoas.

Se você chegou aqui e continua com a idéia de que nutricionista precisa ser magro/sarado/'padrão', reveja sua idéia de felicidade e saúde. Porque o corpo do outro te incomoda tanto? Como está a SUA auto estima, seu amor próprio, o respeito por si mesmo, sua segurança? Se você quer ser 'magrinha que nem a nutricionista', também temos um problema. Não dá pra ser o outro. Só dá pra ser a gente mesmo. E se você realmente acredita que magreza é sinal de saúde, procure saber mais sobre transtornos alimentares. É bom fazer essas análises. E por fim, não adianta dizer que quer se alimentar de maneira saudável e sem paranóias e se incomodar que o nutricionista é gordo. Isso é um contra-senso.

No mais, vamos refletir sobre nossos preconceitos de maneira geral. Todos temos. Mas dá pra quebrar, um por um. As vezes dói e demora. Mas dá pra seguir em frente com novas - e melhores - idéias!

Beijos e até a próxima!