Compulsão Alimentar é vício?

 

O ano de 2021 começou com uma influenciadora cheia de seguidores falando sobre Transtorno de Compulsão Alimentar. Ela se sentiu no direito de falar no assunto, já que tem a doença diagnosticada - e, segundo a própria, sabe muito bem o que está falando.

Mas não sabe não.

De fato, falar sobre as doenças psiquiátricas é muito importante para que outras pessoas se aproximem da ajuda. Na prática clínica, observo muitos avanços quando uma pessoa reconhece na fala do outro o seu problema. Mas existem maneiras e maneiras de se falar sobre um determinado tema, e quando o discurso vem recheado de informações equivocadas e estigmatizadas, não é o melhor caminho.

Portanto, elenquei aqui nesse texto algumas partes da fala dela que acho importante discutir.

“Eu tenho transtorno de compulsão alimentar diagnosticado. Eu já passei por várias tentativas de conseguir me controlar em relação a isso: nutricionista, nutricionista comportamental, psicólogo...”

Primeiro eu gostaria de dizer que sinto muito por isso. Ter transtorno de compulsão alimentar (TCA) não é fácil. É difícil perceber, é difícil decidir se tratar, e é difícil alcançar a remissão. Mas também gostaria de lembrar que o transtorno de compulsão alimentar é uma doença mental que é diagnosticada por um médico psiquiatra, e na fala da influenciadora eu não vejo menção ao responsável pelo diagnóstico – somente a dois profissionais que participam da tríade necessária para o tratamento (nutricionista, psicólogo e psiquiatra).

“Vou te falar o que funcionou para mim! Lembrando que o que funciona para mim pode não funcionar para você”.

De fato, cada pessoa reage de um jeito, da mesma forma que o TCA tem uma manifestação clínica diferente em cada indivíduo. E também é sim muito importante para quem sofrem do transtorno escutar vivências alheias, pois se reconhecer na dor do outro pode aproximar o tratamento. Mas os relatos devem ser contados com cuidado, sem estigma e, de preferência, com responsabilidade sobre como a mensagem chega em quem está ouvindo. Nesse discurso, não vejo nada disso. Observei muitos termos inadequados, pouca ciência e incoerência de informações.

“Transtorno de compulsão alimentar é vício!”.

O transtorno de compulsão alimentar (TCA) é uma doença mental cujos critérios diagnósticos podem ser consultados no DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual), um Manual de diagnóstico para doenças Mentais elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria. Nos critérios diagnósticos, não está relacionada a palavra vício (e nem adição, que seria um substituto para o termo). Portanto, transtorno de compulsão alimentar não é vício.

Além disso, a influenciadora fala muito sobre a qualidade dos produtos que ela consumia durante os episódios de compulsão alimentar: salgadinho, refrigerante, chocolate... Se referindo a gordura e açúcar durante todo o discurso. Apesar de quem sofre com o TCA relatar com frequência episódios de compulsão relacionados com alimentos que carregam uma grande carga de ‘não saudáveis’, é importante ressaltar que a compulsão alimentar não tem uma característica qualitativa. Ou seja: alguém pode ter compulsão alimentar com frutas, queijo, ovos – alimentos vistos como ‘saudáveis’ por quem consome.

“Desenvolvi experimentando várias sobremesas e vários pratos, isso acabou se tornando um transtorno de compulsão alimentar em mim”

Se compulsão alimentar fosse um vício, faria sentido essa afirmação: o vício é a dependência de determinada substância, que deve ser ingerida em quantidades cada vez maiores. Portanto, quanto mais exposição, maior fica a tolerância e, por fim, o consumo. Mas, repetindo: compulsão não é vício.

Os transtornos alimentares tem fatores predisponentes e precipitantes. Os predisponentes são aqueles que aumentam a chance de desenvolvimento da doença, e os precipitantes são os famosos “gatilhos”.  É sabido que a exposição repetida a produtos alimentícios não está elencada como fator predisponente ou precipitante para o início de um transtorno alimentar. Muito pelo contrário! As dietas restritivas estão entre os grandes fatores de risco para o surgimento de transtornos alimentares em geral.

“Eu descobri que açúcar com gordura é basicamente cocaína. E para mim, que sou viciada em açúcar com gordura, eu não poderia trabalhar numa fábrica de vício. Imagino que um drogado não poderia trabalhar numa fábrica de droga.”

Essa é uma das partes mais ousadas e perigosas no discurso da influenciadora. Começamos pelo fato de que produtos alimentícios não são drogas ilícitas: você precisa dos alimentos para sua sobrevivência, ao passo que susbstâncias químicas como cocaína não são necessárias. Mas a comparação de cocaína e (principalmente) açúcar é, mesmo assim, muito comum. Existe de fato uma discussão científica séria porém sobre os efeitos neuroquímicos de determinados alimentos e o uso de substância, assim como também existe a discussão sobre o termo vício e as definições ‘vício em comida’ ou ‘vício em comer’. Mas são debates ainda sem conclusão. O que se sabe é que alimentos ultraprocessados (e aí falamos, principalmente, da mistura gordura + açúcar + sal) parecem ativar mecanismos biológicos e comportamentais que podem fazer com que a pessoa coma mais daquele determinado alimento, e sinta sensações de ‘perda de controle’, que, por fim, ela acaba por relacionar com alguém que tem dependência química.

Portanto, é muito perigoso (além de equivocado) afirmar que transtorno de compulsão alimentar é vício só com base na sensação de perda de controle que você tem ao se deparar com determinados alimentos. O nutricionista Cezar Vicente (1) descreve sobre esse tema rapidamente em um excelente post no seu instagram.

Também acho importante dizer que o termo “drogado” é inadequado e pejorativo. Ninguém é sua doença ou a mazela que o acomete. Chamar alguém de ‘drogado’ é estigmatizar um problema sério que precisa de acolhimento e ajuda. Além disso, dar o nome da doença para o indivíduo, faz com que aquele mal pareça uma má escolha, um defeito moral de quem sofre (2). No final dos stories, ela ainda afirma que as pessoas não gostam de alcoólatras, repetindo o péssimo julgamento.

“O que funcionou para mim foi ler muito sobre esses assuntos. Porque eu passei por exemplo por nutricionista comportamental que falava assim para mim: ah, mas você precisa sentir a comida entrando em você, você precisa ter o controle sobre as coisas que estão na mesa...”

Aqui temos dois equívocos clássicos: a idéia de que saber sobre uma questão te blinda dela e de que nutricionista comportamental te ensina a ter controle.

Se saber sobre nutrição auxiliasse no combate de transtornos alimentares, não teríamos estudantes de nutrição e nutricionistas como grupo de risco para essas doenças. Portanto, se informar é importante para entender o curso da doença – e também para saber onde procurar uma boa ajuda. Mas o conhecimento também pode ser um teto de vidro delicado.

Ainda falando das nutricionistas, é importante ressaltar que o papel da nutricionista que trata transtornos alimentares não é gerar uma exposição aos alimentos a todo custo. Durante o tratamento do TCA, o profisssional de nutrição tem o papel de auxiliar seu paciente a ter um contato confortável com a comida e ensiná-lo a administrar o seu consumo. Isso passa sim pela evitação, mas não a todo custo, se isolando totalmente dos alimentos (numa ilha deserta, como ela parece ter feito ou tentado fazer enquanto gravava os vídeos). Evitar determinados alimentos (que o tipo varia de indivíduo para indivíduo) passa pelo tratamento, mas com o tempo, o contato é retomado sem compulsões.

“A compulsão alimentar é socialmente aceita. E esse é o maior problema da compulsão alimentar. Porque ninguém vai falar pra você: ‘nossa, você já comeu muito’”.

O maior problema da compulsão alimentar, assim como de outras doenças psiquiátricas, é a desinformação. Uma das características da compulsão alimentar (que não é critério diagnóstico, mas conseguimos observar isso em vários relatos), é o isolamento na hora do episódio. Muitas pessoas descrevem estar sozinhas durante os episódios de compulsão, justamente pelo sentimento marcante e comumente presente de vergonha que esse momento representa para quem sofre do transtorno.

E sim, as pessoas infelizmente notam se você comeu muito ou pouco. Talvez não tenham falado nada para ela porque, se tem uma coisa que é socialmente aceita (e não estou dizendo aqui que é correto, muito pelo contrário), é ver um magro comendo muito sem comentar. Mas observe qual a reação das pessoas ao ver alguém com sobrepeso ou obesidade consumindo grandes quantidades de comida num curto período de tempo... a gordofobia impera e os comentários surgem sim.

Pra terminar, após os vídeos (e críticas), a influenciadora sugere que as pessoas leiam um artigo científico que fala sobre vício e açúcar. Gostaria de lembrar que um artigo sozinho não faz ciência. E que para 10 artigos associando açúcar e cocaína, há mais 10 dizendo o contrário. Além disso, o tal artigo é uma revisão narrativa – que acontece quando o autor está discutindo um problema e usando referências para apoiá-lo. Há críticas a esse tipo de estudo, uma vez que ele pode direcionar os artigos que corroboram com as próprias idéias.

O recado que quero deixar aqui é muito simples: vamos tomar cuidado com o tipo de informação consumida. Vamos valorizar os verdadeiros especialistas, ao invés de ficar somente com pseudociência ou ouvindo pessoas que só sabem conduzir a própria vivência para o que é conveniente. 

E fica a reflexão sobre a nossa atual situação de saúde pública. Será que ter  líderes negacionistas e irresponsáveis não é um reflexo das nossas atitudes perante a ciência, em todas as esferas? A desinformação, essa sim, vicia e adoece.

Termino aqui com alguns materiais que acho relevantes para melhor entendimento do assunto.

Até a próxima!

 

Não mencionei sobre jejum para melhora de compulsão alimentar, pois acho que ficou evidente que restrição é o grande egatilhador da compulsão alimentar. Deixo as meninas do Nunca vi 1 cientista para falar melhor disso.

 

(1)Cezar - https://www.instagram.com/p/CJqh5lVluwS/

(2) Trip com ciência - https://revistatrip.uol.com.br/trip-cast/acolhimento-e-depedencia-quimica-com-walter-casagrande-e-luis-fernando-tofoli

Outros materiais:

Sobre nutricionistas e risco de transtorno alimentar - https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-44462002000700005&script=sci_abstract&tlng=pt

Nunca vi 1 cientista - https://www.youtube.com/channel/UCdKJlY5eAoSumIlcOcYxIGg

Episódio do Podcast Não Conto Calorias – Compulsão Alimentar

Episódio do Podcast Não Conto Calorias – Vício em comida