Como os nossos pais?

Eu sempre ouvi da minha mãe que eu era (pra ela eu ainda sou, hahaha) desorganizada. E até pouco tempo atrás eu realmente acreditava nisso: que eu era desorganizada. Até que comecei a perceber que as pessoas ao meu redor me acham … organizada! Dois momentos me marcaram muito: Um dia foi uma tia que me falou sobre como eu guardava os sapatos e roupinhas da Barbie “tão direitinho, tudo bem organizadinho”. Depois foi um amigo de infância que disse: “lembra quando brincávamos de banca de jornal? Você era tão organizada com as revistinhas!”. E aí caiu uma ficha: por muito tempo eu me achei desorganizada. Não porque sou, mas porque minha mãe afirmava isso para mim repetidas vezes. Como a percepção que temos de nós e do mundo perpassa pelas afirmações e apontamentos das nossas mães, pais e responsáveis, não teria como eu me sentir organizada com minha mãe afirmando o contrário.

Hoje está claro para mim. Aos 38 anos eu entendi que sou sim organizada – não do jeito dela, mas sou. Consegui identificar isso e me monitoro frequentemente pra não cair na pegadinha de achar que eu ‘não’ sou o que eu realmente sou. Demorou. Me custou terapia, reflexão e tempo para seguir num trabalho permanente de auto-observação. Ainda bem que não impactou a minha vida pessoal ou profissional, apesar de ter me causado muito autojulgamento desnecessário. Mas podia ter sido pior. Eu podia ter vestido eternamente a personagem desorganizada, me limitando na hora de desenvolver esse aspecto da minha vida. Ou podia ter passado muito tempo tentando alcançar o nível dela de organização, vivendo numa eterna frustração, porque ninguém é igual a ninguém.

Pensando nisso, fiquei imaginando a criança que cresce ouvindo aquelas frases como ‘você precisa comer menos senão vai ficar gorda’, ‘se engordar não vai arrumar namorado/a’ e até o clássico ‘tão linda, pena que é gordinha’. Além dela aprender erroneamente que o corpo gordo pertence a alguém ‘pior’, ela pode crescer com uma auto estima baixa. E também estará sob risco aumentado de gastar boa parte do tempo tentando alcançar um corpo que provavelmente ela nunca terá- não por incompetência, mas porque esse corpo é o seu ideal, não o dela. Mas até a criança se tornar um adulto e entender isso, muitas coisas irão acontecer.

Quando a criança entra na adolescência, ela convive com outros adolescentes que também receberam informações parecidas a respeito de peso e beleza, que por sua vez irão opinar sobre os amigos e amigas, reforçando assim aquelas verdades familiares, perpetuando o estigma do corpo gordo e a associação certa entre belo e magro. Misture isso a pressão social, preconceito e estímulos midiáticos e já dá para decorar o grande bolo da pressão estética.  

Crescemos acreditando nessas (más) verdades que nossos pais nos contam, formando os comportamentos sociais e nos custando muito, principalmente pra entender que grande parte das afirmações ouvidas em casa dizem mais sobre os valores e experiências dos nossos pais do que sobre as nossas vidas. E aí, haja vontade, terapia e energia para mudar essas crenças e valores. E enquanto a gente não descobre quem a gente verdadeiramente é, gastamos muito tempo sofrendo com uma autoestima ruim e podendo nos custar até nossa saúde mental.

Entendo a preocupação com a saúde dos filhos como algo legítimo e necessário. Mas saúde não diz respeito apenas ao tamanho do corpo. E é um equívoco excluir o bem-estar mental do físico. Também entendo o medo que alguns pais e mães tem em relação ao peso porque sofreram (e talvez até hoje sofrem) com discriminação, comentários ou bullying - e por isso não desejam o mesmo calvário para os filhos. Seria inocência minha esperar que todos fossem muito tranquilos em relação a essa questão, ainda mais num mundo onde o valor estético está acima de valores essenciais a existência humana e a vida em sociedade. Mas é justamente por isso que precisamos cuidar das nossas expectativas antes de transferí-las.

A linha entre preocupação e pressão é tênue, finíssima. Mas não é invisível. Garantir uma boa saúde infantil e evitar oscilações de peso é importante, mas não se resume em pressionar pelo corpo magro, fazer dietas restritivas sugerir atividades físicas focando a perda calórica.

Precisamos estabelecer uma boa alimentação em todos os aspectos desse conceito. Ou seja: garantir uma nutrição adequada, mas também uma boa relação com a comida – e também incentivar a prática de atividades físicas como uma ferramenta de desenvolvimento cognitivo, social e físico. Além disso, garantir que a criança entenda que ela é muito mais do que o tamanho do corpo, e que a imagem dela não determina suas capacidades intelectuais, sociais e biológicas.

É importantíssimo também separar a realização do próprio desejo do bem-estar do filho, praticar a auto-observação a respeito de como estamos adoecidos com relação a padrões de beleza, e se conscientizar sobre os riscos para a saúde mental quando perpetuamos a tirania da pressão estética.

Meu mais profundo desejo é ver essas discussões sobre corpo elevadas ao mesmo patamar que se encontram os bolos de aniversário sem açúcar, as festas infantis sem frituras e os sorvetes sem açúcar. Quem sabe assim, construiremos uma sociedade mais munida de boa auto estima e sem sofrimentos psíquicos intensos.

Foto: eu aos 6 anos de idade com minha mãe, na minha ‘formatura’ da alfabetização