Efeito Hadid e Ozempic

A semaglutida é uma substância vendida sob o atual e conhecido nome de Ozempic e que, segundo a bula vigente, "é indicada em conjunto com dieta e exercícios, para tratar pacientes adultos com diabetes tipo 2 não satisfatoriamente controlada". Ao contrário do que a mídia tem dito, ele não é uma caneta do emagrecimento. Sua versão para o tratamento da obesidade já foi aprovada em janeiro pela ANVISA, mas ainda não está sendo oficialmente comercializada com esse objetivo. Digo oficialmente porque o uso off-label da substância segue a todo vapor, aumentando as vendas e "causando uma indisponibilidade de Ozempic", resultado de uma demanda muito maior que a prevista" - segundo aviso no próprio site do fabricante. 

A medicação não é novidade nem para as indicações da bula e nem para o uso off-label. Outras opções similares já existiam no mercado: a 'prima' liraglutida, conhecida também por Victoza e Saxenda, é um exemplo de remédio que já vinha mudando a forma de tratar pessoas com o diabetes tipo 2 e sobrepeso. Através de injeções (diárias no caso da liraglutida, semanais no caso da semaglutida), os compostos mimetizam o GLP-1, e dentre várias consequências, induzem a saciedade e levam a perda de peso. Os estudos feitos com ambas medicações apontam para uma redução média do peso total de 10% para a liraglutida, podendo chegar a 20% para a semaglutida. Esses resultados foram alcançados após mais de um ano do uso da medicação, e em conjunto com dieta hipocalórica e no mínimo 150 minutos de atividade física por semana. É importante enfatizar também que nos estudos realizados com a semaglutida (Ozempic), as pessoas envolvidas tinham em média 100kg e um IMC acima de 30kg/m2.

Os resultados são bem satisfatórios, principalmente se vistos sob a ótica da classificação proposta pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabolismo (SBEM) e Sociedade Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO): a obesidade controlada. Essa classificação não considera a 'normalização' do IMC (leia-se, IMC < 25km/m2) como objetivo do tratamento, mas sim reduções de 5 a 15% do peso com melhoras clínicas, a depender do histórico clínico do indivíduo. 

Portanto, a semaglutida, na sua versão para tratamento da obesidade - que em breve será comercializada como Weygov - parece ter uma boa eficácia e um baixo risco. Considerando que a obesidade é uma condição multifatorial e não uma escolha ou uma questão de força de vontade, o remédio é bem vindo quando bem indicado. A prescrição dessa medicação apoiada em mudanças globais como atividade física regular, qualidade do sono, alimentação equilibrada e saúde mental satisfatória, parece ser uma grande ajuda para quem realmente precisa.

Mas perceba que até aqui, nós estamos considerando um público específico: aquele que tem a saúde como motivação para perder determinada quantia de peso, e não quem tem um desejo social de emagrecer.  Desejo esse que é provocado pelo 'Efeito Hadid'. Esse nome me ocorreu depois de ler um artigo da Jia Tolentino na New Yorker Magazine, no qual ela conta que uma amiga considerou usar o Ozempic se justificando com a seguinte fala: "Eu sou magra tipo a Gigi Hadid. Mas poderia ser magra como a Bella Hadid". Quanto mais magra, melhor.

E qual seria a consequência do uso da semaglutida para esse grupo? Antes mesmo de discutir os possíveis riscos, porque não se perguntar: porque queremos estar e continuar cada vez mais magras e magros, uma vez que a saúde não vive no manequim 36? E se o uso indevido do remédio é o sintoma, quem é o responsável pelo adoecimento?

A sociedade entende a magreza como um valor, e o excesso de peso como uma questão moral. Pessoas gordas são frequentemente taxadas de preguiçosas, desleixadas e desorganizadas, enquanto as magras são bem sucedidas, vitoriosas e capazes. Se vestir é mais fácil para pessoas magras e estar 'dentro' do peso é também um marcador de classe social: no Brasil, indivíduos das classes C e D são quem mais vivenciam a obesidade. Uma forma de ostentar, é emagrecer. Nas peças publicitárias e no fantástico mundo dos influenciadores, aquelas que mais aparecem, vendem e tem uma vida glamurosa são magras. A mídia reforça de maneira sutil e escancarada uma verdade inconveniente: estar magro é estar no topo.

Segundo a pesquisa TODXS, realizada pela Onu, o padrão de beleza idealizado no Brasil para as mulheres continua sendo uma versão feminina branca, magra, com curvas, cabelos lisos e castanhos. Nos dados coletados em 2021, esse padrão aparece em 62% dentre as protagonistas de TV e no Facebook. O número de inserções de modelos e atrizes  plus size não saiu de 0% na TV e alcançou o percentual de apenas 2% no Facebook.  Se queremos nos tornar o que consumimos, o uso equivocado do remédio veio para dar força a 'obrigação' social da magreza.

Agora essas representações estão em maior volume e frequência. Se na época do boom da bariátrica ou da dieta Low Carb o que tínhamos de oferta eram artigos em revistas semanais ou alguns posts no instagram, a semaglutida ganhou espaço intenso e inacabável no tiktok, onde qualquer um pode encontrar desde conteúdos sobre 'antes e depois' como instruções de como usar o remédio de diversas maneiras - na sua maioria, protagonizadas por pessoas que não pertencem ao grupo da indicação farmacológica.

É através dessa rede de informações que nos joga o tempo inteiro para um corpo cada vez mais magro que o Ozempic ganha território num campo minado: o da auto medicação ou do uso irregular.

Essa mídia é responsável não só por glorificar, incentivar e aumentar o uso, mas peca também na utilização de expressões inadequadas para falar sobre o remédio: termos como 'injeção para emagrecer', tratamento 'revolucionário' e 'grande novidade do emagrecimento' geram curiosidade e engajamento, aumentando ainda mais o desejo pelo Ozempic. Essas manchetes dão ao remédio a fama de emagrecedor, como se ele fosse gerar e manter o emagrecimento, quando na verdade, ele tem outras funções - e não garante a manutenção desse resultado.

Numa tentativa não tão efetiva, essa mesma imprensa e parte dos profissionais de saúde travam uma verdadeira batalha contra a medicação através do discurso da falta de remédios nas prateleiras: "vai faltar para quem precisa", lembram aqueles que não se deixaram levar pela urgência social da magreza. 

Mas não é a primeira vez que a distribuição de um remédio é impactada pelo seu uso não convencional: Venvanse e a invermectina já mostraram que alardear sobre a falta para quem necessita não muda o comportamento do consumidor ávido por uma pílula mágica. 

Afinal, será que quem coloca o próprio corpo sob efeitos colaterais em troca de alguns quilos a menos iria realmente se preocupar com o outro? 

Além da mídia, temos outros grandes impulsionadores do consumo: os profissionais de saúde que preferem prescrever o que o paciente quer do que elevar o nível da conversa e discutir sobre a real necessidade do uso. Falar sobre mudança de estilo de vida e/ou pressão estética? Trabalho puxado. É mais fácil se mostrar por dentro da moda e corresponder as expectativas de quem procura o médico. Além disso, o resultado no corpo do paciente se torna um capital para o profissional, perpetuando velhos sintomas dos novos tempos. 

Pouco se fala também sobre os possíveis riscos desse uso off-label para 'alguns quilos a menos'. O primeiro deles é o já conhecido ciclo dieta/exagero - gerando o efeito sanfona. Partindo da lógica que a maioria não irá aplicar a medicação para sempre e muito menos irá se preocupar em unir o tratamento com outras mudanças, após a suspensão do uso essas pessoas sentirão fome e saciedade como antes e, consequentemente, poderão (re) ganhar peso. Sei que a idéia do remédio 'para dar um gás' é tentadora, mas a garantia disso é a mesma de qualquer outro tratamento (farmacológico ou não) traz perdas rápidas e não mexe na causa do ganho: ao final, se recupera - muitas vezes, até mais - o peso.

O remédio também é caro, custando hoje mais de R$1.000,00 por mês, fazendo com que o consumidor tenha que escolher entre comprá-lo e manter outros hábitos, como alimentação saudável e atividade física. Será que essa troca faz sentido? 

Os transtornos alimentares e questões de auto imagem também podem florescer ou retornar sob o uso dessas medicações. Ao contrário do que se pensa, esses problemas não são exclusivos de adolescentes, e a mudança rápida do corpo vinculada e o baixo consumo alimentar são dois gatilhos centrais para o disparo de transtornos. Sem ou com diagnóstico prévio de algum problema psiquiátrico, é bom pensar duas vezes antes de embarcar na 'caneta emagrecedora'. 

Sem falar nos efeitos colaterais mais comuns e 'tolerados', existem também os riscos que as pessoas não olham ou fingem não prestar atenção: aqueles descritos no próprio site do fabricante, baseados em relatos colhidos durante o desenvolvimento do produto. Para o Wegovy, a bula alerta sobre tumores na tireóide, pancreatite aguda, problemas como pedra e inflamação na vesícula biliar, hipoglicemia, lesões renais e até comportamentos e ideações suicidas. Embora sejam considerados eventos raros, é importante estar ciente de que esses riscos existem.

Por fim, temos uma indústria que fatura bilhões comandando esse hit do emagrecimento. Juntos, Ozempic e Wegovy já respondem por 43% da receita da Nordisk, que se tornou a segunda empresa mais valiosa da Europa, batendo o recorde do seu valor de mercado. E no capitalismo selvagem, o lucro muitas vezes ignora questões humanas. Seria esse o caso?

Eu sigo sem uma resposta única para a pergunta "o remédio é bom ou não?". Prefiro dizer que o problema não é a substância, e sim o mau uso dela. Me preocupo com a resistência ao remédio por parte de quem se beneficiaria. Assim como acontece com os antidepressivos e ansiolíticos, que 'graças' ao uso inadequado são estigmatizados e evitados por quem precisa, a semaglutida pode trilhar o mesmo caminho. Também não sabemos as consequências de longo prazo para o uso off-label e os conteúdos sobre o sucesso do emagrecimento viralizam mais do que aqueles que falam do fracasso, dificultando nosso conhecimento sobre resultados infelizes.

No momento, afirmo que o remédio não representa a causa, e sim o sintoma de uma sociedade adoecida e presa em padrões estéticos inalcançáveis. Sigamos vigilantes e atentas.