Os super cafés e a sociedade do desempenho

Quando Hipócrates escreveu* “que sua comida seja seu remédio e seu remédio seja seu alimento”, em 400 a.C , as vacinas e os antibióticos não existiam, e talvez por isso a frase fizesse sentido. O mundo era diferente também em outros aspectos: não havia carros,  trânsito, poluição ou ultraprocessados, e smartphones.

Estamos em 2023 e tudo mudou, mas parece que ainda levamos a sério a frase atribuída ao filósofo grego, procurando na comida soluções milagrosas para problemas contemporâneos. Falta de concentração? Sono? Baixo desempenho? Necessidade de performar no trabalho? A energia está no alimento. Em alguns casos, nas bebidas.

Um exemplo/prova disso é a venda dos energéticos da Red Bull: em menos de 10 anos, a empresa quase dobrou seu número de vendas. E o energético não é consumido só nas vodkas dos baladeiros, mas também no dia a dia, pelos farialimers e pelos funcionários das bigtechs. 

Você pode até não ter visto alguém lançando mão da bebida assim, num dia comum, longe da farra. Mas certamente já viu alguém bebendo café com a mesma intenção: energia e disposição. O cafézinho de fato pode aumentar o estado de alerta através da cafeína, a substância psicoativa mais consumida no mundo.

Quando ingerida, ela 'engana' alguns receptores cerebrais, sinalizando uma falsa presença de energia no corpo - e é por isso que o sono passa e nos sentimos mais dispostos. Esse efeito colateral da cafeína é dose dependente, ou seja: doses baixas podem trazer sensações positivas acerca da sensação de alerta, já doses elevadas podem aumentar a tensão e os sintomas de ansiedade, nervosismo e agitação. 

Não existe recomendação única para o consumo da cafeína. Na verdade, existe uma discordância entre os orgãos de saúde de cada país. A European Food Safety Authority (EFSA), por exemplo, sugere que 400mg de cafeína por dia são aceitáveis, o que equivaleriam a 4 xícaras de café (coado)- e aconselham também que cada pessoa observe os efeitos individuais do consumo da bebida cafeinada.

Além do seu efeito colateral fisiológico, o café também tem seu impacto terapêutico. "Tomar um cafezinho" é significado de pausa, de apreciação. Ou pelo menos era. Agora, o preparo é rápido - como você também deve ser.

Para alguns, o ritual do café mudou. A indústria, inspirada no antigo bulletproof do vale do silício e entendendo que a idéia de sociedade do desempenho do filósofo Byung-Chul Han talvez não seja só uma teoria - e sim uma realidade - criou os cafés turbinados. As versões ultra, power, boost prometem uma disposição ilimitada. O gás que você precisava para seguir firme no 'quem pode mais' da vida fora e dentro das redes sociais. Be ready, be unstoppable – é o que diz um suplemento a base de café em pó. 

Sim, suplemento. Porque essas bebidas são, na verdade, suplementos a base de café (o solúvel, diga-se de passagem). Esse ‘pequeno detalhe’ que a publicidade nem sempre mostra é fácil de observar: está na descrição do produto e na lista de ingredientes dos diversos tipos disponíveis no mercado. Aquele que deveria ser protagonista – ou seja, o café - dificilmente é o primeiro na lista de ingredientes. Ele está entre TCM, taurina, vitaminas, gengibre, pimenta, chá verde... nomes já conhecidos de quem já teve o mínimo contato com a cultura da dieta, e que são frequentemente relacionados a conceitos como energia, metabolismo, foco e concentração. 

Nas embalagens esses termos estão estrategicamente posicionados nos rótulos, ao lado de símbolos e imagens que também nos levam a crer que aquele é o novo milagre alimentar que vai nos salvar da preguiça e da falta de concentração.

Por ser um produto que contém cafeína, ele de fato poderia realmente nos dar mais energia. Mas o quão mais capaz ele é?

De acordo com os fabricantes, 100 mL de café turbinado contém 100mg de cafeína, quantidade maior do que a encontrada no café coado (60mg/100mL) ou no café solúvel (50mg/mL), mas ainda perdendo para o espresso, que em 100mL pode chegar a mais que o dobro de cafeína (aproximadamente 220mg/100mL). Portanto, em termos de cafeína ele seria bom assim como funciona um espresso – ou até uma dose maior da versão coada.

Outro ingrediente hypado  é o TCM – triglicéride de cadeia média, uma gordura encontrada no óleo de coco que já ocupou o destaque nas prateleiras por volta de 2012. É uma fonte energética de fato interessante, mas que pode ser facilmente substituída por qualquer outro alimento e não tem nenhuma vantagem qualitativa e quantitativa que justifique o valor do produto, como explicou a nutricionista Desire Coelho no reelssuper cafés aceleram mesmo o metabolismo?”, que pode ser visto no seu perfil do instagram.

Nesse mesmo vídeo, a nutricionista explica que os outros ingredientes presentes nos super cafés e que são relacionados ao aumento do metabolismo e da energia estão em uma concentração muito pequena, insuficiente para gerar o aumento de desempenho esperado por quem toma e prometido por quem vende.

Ou seja: você está pagando R$9,00 (nove reais) na dose de um café que poderia valer menos - e que o tempo de preparo é equivalente a um espresso de máquina ou até de um coado.

Além dos dados nutriconais

Sou uma pessoa positiva em vários aspectos, mas quando se fala da indústria alimentar, meu pessimismo (ou seria pragmatismo?) dominam. Acredito que a cultura da dieta permanecerá por muito tempo, dando oportunidades imperdíveis para a criação de novos produtos milagrosos. Por isso achei interessante analisar a composição do café turbinado, destrinchando seus ingredientes e mostrando que ele é apenas mais um produto, uma alternativa para o consumo de cafeína, e não um super alimento. O fiz porque entendo que as artimanhas do marketing seduzem até os consumidores mais atentos.

Porém, o que mais me intrigou nessa nova onda cafeinada não foi o fato de um produto vender sem necessariamente entregar, mas sim as motivações que o promovem: te dar disposição. MUITA disposição - ou como um desses cafés tem no rótulo, fazer com que você fique ‘imparável’: “be unstoppable”. 

Precisamos de mais energia ou descanso?

Os números escancaram a má qualidade da nossa saúde mental: em 2019, uma pesquisa estimou que 32% da população economicamente ativa sofria de burn-out. Ao contrário dos gregos contemporâneos de Hipócrates, nós não temos tempo livre, e quando temos, gastamos aproximadamente 2 horas deles por dia nas redes sociais. Vivemos sob pressão, com uma baixa qualidade de vida e hipervigilantes. A OMS estima que 40% da população mundial sofre com algum problema relacionado ao sono. 

A Red Bull teve um aumento de vendas 24% em um ano (comparando 2021 com 2020), o Venvanse (medicação para tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade - TDAH) dobrou o número de vendas nos últimos dois anos aqui no país e o tema TDAH é um dos campeões de buscas e citações no TikTok. Apesar de insuficientes, as pesquisas atuais apontam o Brasil como o segundo país do mundo com mais casos de Burn Out.

Esses dados formam um grande demonstrativo da busca incansável pelo alto desempenho – e pelo preço que pagamos ao ter que agir no imperativo, como máquinas: “dê o melhor de si mesmo”, “crie hábitos atômicos”, “nunca desista dos seus sonhos”. E é numa sociedade hiper estimulada por telas, vivendo sempre sob a expectativa da superprodutividade, onde os alimentos-remédio fazem morada.

Você pode estar pensando que com você não é tão grave, porque pelo menos você está consumindo apenas uma bebida a base de café e óleo, e não um medicamento ou uma droga. Mas você chegou a se questionar porque você precisa tanto de um alimento para te dar energia?

Como está seu estilo de vida? Alimentação, stress, atividade física, tempo de descanso, qualidade do sono, nível de conectividade. Só depois de entender o impacto desses fatores na vida - e na sociedade - é que deveríamos esperar tanto de um sachê de café.

Talvez o que você esteja procurando naquele pote de R$100,00 que tem menos cafeína que o café solúvel de R$10,00 seja uma mudança mais profunda – ou até o entendimento que algumas tarefas não são realizadas com tanta energia, mas mesmo assim, são essenciais, importantes, e fazem parte da vida adulta.

Além disso, me questiono sobre o objetivo do consumo desse café. Você está comprando o produto ou o estilo de vida de quem o promove? 

Prestando atenção nos corpos-propaganda dessas bebidas, vi uma similaridade entre eles: a grande maioria pertence a pessoas magras, brancas, bem sucedidas e que tem uma vida diametralmente oposta a maioria da população. Se os corpos das publicidades fossem de pessoas ‘comuns’, sem filtro, gordas ou sem uma vida glamourizada: você compraria esse produto? Acreditaria nele? 

E porque essas pessoas (influencers) que tem acesso as melhores academias, tratamentos e alimentação, um trabalho mais divertido que o seu - e que paga muito bem - precisam de MAIS disposição e concentração? 

Entender as reais motivações para comprar e consumir algo não essencial a vida faz parte de um bom consumo alimentar. Além disso, na minha opinião, a busca pelo alimento-remédio é mais sintoma do que tratamento.

Duvidar do milagre e dizer não a pílula mágica não é fácil. Mas é mais do que uma atitude alimentar: é um enfrentamento a cultura do desempenho que não tem como objetivo o bem estar de quem performa. É o não comer como ato político.

*Frase atribuída a Hipócrates, sem a comprovação da autoria